segunda-feira, 5 de novembro de 2018

A mudança de paradigma da tutela cautelar


No direito processual administrativo anterior à Reforma do Contencioso Administrativo de 2004, a figura genérica das providências cautelares era quase inexistente. A possibilidade de “suspensão da eficácia do acto administrativo”, constituía a única providencia expressamente prevista e para que esta providência fosse admitida, seria exigível a impossibilidade da reparação do dano decorrente da execução do ato.
Com esta reforma procura-se, no que diz respeito às providencias cautelares, acautelar de forma mais eficaz direitos existentes, para além da mera suspensão da eficácia do ato. Até porque, sem que haja uma tutela cautelar efetiva não poderá, de forma alguma, existir uma tutela declarativa e executiva eficazes. O legislador em 1997 vem introduzir no art. 268.º CRP uma dimensão cautelar no que concerne à garantia constitucional da tutela efetiva, de forma evitar factos consumados ou situações que não seriam possíveis de se reverter[1].
Hoje o leque de providências cautelares que o Código prevê é vastíssimo. Desde a já conhecida suspensão da eficácia de um acto administrativo (ou de uma norma) até à intimação para a adopção ou abstenção de uma conduta por parte da Administração ou de um particular. E, para além das providências específicas que prevê o Código de Processo Civil, ainda são admissíveis todas as providências que se mostrem adequadas a assegurar a utilidade da sentença a proferir no processo principal, mediante o disposto no art. 112.º/1 CPTA. Assim, foram concedidos, além dos efeitos conservatórios, efeitos antecipatórios de forma a que se possam prevenir danos irreparáveis ou de difícil reparação[2].
Desta forma, o autor num processo declarativo, já intentado ou ainda a intentar, pede ao tribunal que adote “uma ou mais providências com o objetivo de impedir que, durante a pendência do processo declarativo, se constitua uma situação irreversível ou se produzam danos de tal modo gravosos que ponham em perigo, no todo ou pelo menos em parte, a utilidade da decisão que ele pretende obter naquele processo”.[3]
Vem, ainda, a ser possível a cumulação de duas ou mais providencias cautelares em casos em que não existe outra forma de atingir o resultado e acautelar adequadamente o direito ameaçado.
Face a esta amplitude das providências cautelares, recairá sobre o juiz administrativo, a ponderação casuística da admissibilidade da providência cautelar mediante a fundamentação que lhe é atribuída. Isto é, ponderar se a solicitação da providência cautelar é destituída de fundamento ou, pelo contrário, se a sua fundamentação se demostra suficiente para aferir da possibilidade de alteração da situação de facto, durante a pendencia da ação, e a decisão nela proferida, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou, pelo menos, parte significativa dela.[4]
Após a reforma supramencionada, suprimiu-se a ausência de instrumentos adequados à garantia de uma tutela efetiva fora dos casos de suspensão de ato, pelo que as providências cautelares vêm assentar no princípio da tutela judicial efetiva dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos. Com isto, proporciona-se uma proteção adequada dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, perante qualquer atuação ilícita da Administração Pública.
Uma vez que os tribunais podem condenar a Administração, seja na obtenção ou abstenção de condutas, as medidas cautelares devem assentar na separação de poderes bem como na prossecução do interesse público de uma forma equilibrada e em harmonia com princípios constitucionais.
Quatorze anos após a entrada em vigor do CPTA[5], é visível um grande avanço no regime processual anterior a este, devido à sua elevada qualidade técnica e índole garantista e anti formalista.
A tutela cautelar tem uma função instrumental ao procurar assegurar o efeito útil da sentença a proferir na ação principal[6]. Esta instrumentalidade resulta, desde logo, do facto de o processo cautelar só poder ser desencadeado pelo autor da ação principal, uma vez que só este tem legitimidade para procurar ver assegurada a utilidade da sentença que, no processo principal, virá a ser proferida.
  No entanto, a solução adotada tem-se como provisória, possuindo efeitos que são limitados no tempo até a execução da decisão principal. A providência cautelar pode vir a antecipar, ainda que a título provisório, a produção do exato efeito que a decisão a proferir no processo principal pretende determinar, ainda que esta a título definitivo. Este título provisório pode levar a que esta antecipação caduque quando, no processo principal, se chegue à conclusão de que esta situação provisório não é compatível com aquilo que se vem a decidir neste processo (principal).
Exige-se “manifesta urgência na resolução definitiva do caso” o que vem a resultar numa apreciação sumária dos factos apresentados, exigindo-se um juízo de mera probabilidade sobre a existência do direito que se visa acautelar.
O art. 112.º com epígrafe “Providências Cautelares” vem, no seu número 1, elencar, de forma exemplificativa, as possíveis providências cautelares. As providências cautelares conservatórias procuram manter ou conservar um direito em perigo, pelo que a suspensão da eficácia de acto administrativo ou de uma norma[7], é exemplificativa disso mesmo. Ao passo que as providências cautelares antecipatórias, procuram obter uma prestação, que envolverá, ou não, a prática de actos administrativo. Aqui a tutela cautelar concretiza-se pela adoção de medidas necessárias para minorar as consequências do retardamento da decisão sobre o mérito da causa
De acordo com o art. 120.º CPTA, as providências conservatórias serão deferidas desde que se verifiquem os seguintes requisitos: (i) que haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal (periculum in mora); (ii) que não seja manifesta a falta de fundamentação da pretensão formulada ou a formular nesse processo ou a existência de circunstâncias que obstem ao seu conhecimento de mérito (fumus boni juris); (iii) que da ponderação dos interesses públicos e privados em presença decorra que os danos resultantes da concessão da providência não se mostram superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, ou que, sendo superiores, possam ser evitados ou atenuados pela adopção de outras providências (proporcionalidade e adequação da providência)[8].
Além da verificação destes requisitos, a concessão de providencia cautelar dependerá, sempre, da invocação e demonstração de factos que permitam concluir acerca da verificação desses mesmo pressupostos.
Quando, no art.º 120º CPTA se exige que “haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação (…)”, fala-se de um perigo de dano iminente e irreparável ou dificilmente reparável.
Cabe também ao requerente provar o fundado receio deste perigo (“periculum in mora”), pelo que nas providências conservatórias, é exigido o periculum in mora de infrutuosidade, com o intuito de manter a situação existente, e nas providências antecipatóricas, o periculum in mora de retardamento, com vista a antecipar a solução pretendida.
“O traço típico do processo cautelar está, por um lado, na espécie de perigo que se propõe conjurar ou na modalidade de dano que pretende evitar, e, por outro, no meio de que se serve para prosseguir o resultado a que visa. O perigo especial que o processo cautelar remove é este: o periculum in mora, isto é, o perigo resultante da demora a que está sujeito um outro processo (o processo principal), ou, por outras palavras, o perigo derivado do caminho, mais ou menos longo, que o processo principal tem de percorrer até à decisão definitiva, para se dar satisfação à necessidade impreterível de justiça, à necessidade de que o julgamento final ofereça garantias de ponderação e acerto. (…) Por outras palavras: o processo cautelar realiza a sua função mediante uma apreciação provisória da relação litigiosa”.[9]
Isabel da Fonseca, por seu turno, na fase de discussão da Reforma do Contencioso Administrativo, escrevia que “o periculum in mora não é um perigo genérico de dano, pelo contrário, é o prejuízo de ulterior dano marginal que deriva do atraso da providência definitiva resultante da inevitável lentidão do processo ordinário. Este periculum in mora é em regra qualificado pelo legislador e aferido numa perspectiva funcional: só tem – ou devem ter – relevância os prejuízos que coloquem em risco a efectividade da sentença proferida no processo principal. O periculum in mora traduz, por conseguinte, um tipo de urgência. É, portanto, uma urgência: somente se atende pela tutela cautelar à urgência referente à demora do processo principal. Nem toda a urgência de tutela jurisdicional tem guarida na tutela cautelar. Não deve, pois, confundir-se tutela cautelar preventiva – que se decreta perante a ameaça de lesão e antes de esta se consumar – , nem tutela cautelar com tutela urgente – que emite com celeridade. Há entre elas uma «relação de género e espécie» que origina a que surjam «procedimentos e providências de urgência sem carácter cautelar»”.[10]
Mediante o que foi dito, parece que se deve entender como prejuízo irreparável aquele que, mediante os factos alegados pelo requerente, prevê uma situação de impossibilidade de reintegração da sua esfera jurídica, em caso em que o processo principal venha a ser considerado procedente. Os factos alegados pelo requerente devem ser a base de sustentação de um receio de que, com a recusa da providência, se vem a tornar impossível, proceder à reintegração, da situação conforme à legalidade, no caso de o processo principal proceder.[11] 
A providência também deverá ser concedida no caso de os factos alegados pelo requerente fundarem um justo receio da produção de “prejuízos de difícil reparação”, devido à própria mora do processo.
            A expressão latina fumus boni juris significa a probabilidade da existência de um direito. Este requisito exige que o direito acautelado seja tratado como uma simples probabilidade, e não como um direito que efetivamente existe. Exige-se, desta forma, que o juiz avalie a probabilidade da procedência da ação principal, concluindo pela existência, ou não, do direito invocado. Deve, ainda, existir uma aparência de procedibilidade da decisão final, visto que para que se conceda uma providencia cautelar, basta que o fundamento substancial da pretensão seja adequado.
Escrevem Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha que o art. 120.º CPTA faz “depender a atribuição de providências cautelares da formulação de um juízo sobre as perspectivas de êxito que o requerente tem no processo principal. Se este é, pois, um critério comum à atribuição, tanto de providências conservatórias, como de providências antecipatórias, a verdade, porém, é que a formulação utilizada, quanto a este ponto, em cada uma das alíneas é diferenciada, de onde resulta que a atribuição de providências conservatórias, por um lado, e de providências antecipatórias, pelo outro, obedece, neste particular, a regimes distintos.”
Entendem estes mesmo autores que “não é necessário um prejuízo de probabilidade quanto ao êxito do processo principal, basta que não seja evidente a improcedência da pretensão de fundo do requerente ou a falta do preenchimento de pressupostos dos quais dependa a própria obtenção de uma pronúncia sobre o mérito da causa. Pelo contrário (…), tem de ser provável que a pretensão formulada ou a formular no processo principal venha a ser julgada procedente para que uma providência antecipatória possa ser concedida. Como, neste domínio, o requerente pretende, ainda que a título provisório, que as coisas mudem a seu favor, sobre ele impende o encargo de fazer prova sumária do bem fundado da pretensão deduzida no processo principal.”[12]
E é facto certo que o CPTA antes da revisão de 2015 atribuía esta diferente relevância, consoante estivesse em causa a adopção de uma providência conservatória ou antecipatória.
No entanto, o legislador de 2015 vem estabelecer aqui um regime homogéneo, dizendo que ambas as providências em questão só podem ser adotadas quando seja provável que a pretensão formulada ou a formular no processo principal venha ser julgada procedente.
Há, ainda, uma dimensão de proporcionalidade a ter em conta pelo juiz na atribuição de uma providência cautelar. Esta atribuição não depende só do preenchimento da previsão do n.º 1 do art. 120.º mas há que ter em conta o n.º 2 deste mesmo artigo que estabelece que mesmo que se preencha o número 1, as providencias podem ser recusadas. Estes são casos em que da ponderação dos interesses públicos e privados em presença se conclui que os danos resultantes da concessão dessa mesma, providência, se mostrem superiores aos resultantes da sua recusa. A atribuição da providência está ainda dependente de um juízo de valor relativo, resultante da comparação da situação do requerente com a dos eventuais titulares de interesses contrapostos.[13]
Ainda que a posição do requerente seja digna de proteção, esta não é a única posição a ter em conta. Permitindo-se que o interesse dos demais envolvidos, ao ser tido em conta, resulte na não atribuição da providência, a fim de se evitarem danos desproporcionados em relação àqueles que se pretendia evitar que fossem causados aos interesses do requerente. Exige-se uma ponderação equilibrada dos interesses em presença, bem como os eventuais riscos que possam surgir com a atribuição da providência.
O número 3 do art. 120.º CPTA vem permitir ao juiz que se desvincule do princípio do pedido, na medida em que, lhe permite encontrar a solução mais adequada à justa composição dos interesses envolvidos. Esta solução pode passar pela adoção de outra(s) providência(s), em cumulação ou substituição da que terá sido requerida. Pelo que se permite o decretamento de providências cautelares de qualquer tipo desde que adequadas a garantir a utilidade da sentença e ao necessário para evitar a lesão.[14] 
Pretende-se com isto evitar que a recusa da providencia, pura e simplesmente pela ponderação dos interesses em presença no número 2 do art. 120.º CPTA. E ainda assegurar que as providências cautelares se limitem ao necessário para evitar a lesão dos interesses defendidos pelo requerente.
            A título exemplificativo, no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12 de Janeiro de 2012, o mesmo Tribunal entendeu pela não atribuição de providência cautelar, pela falta de verificação de requisitos supra mencionados.
            O tribunal vem a concluir pela não verificação da existência do periculum in mora, por não ocorrer uma situação de facto consumado. Por outro lado, a requerente não terá sequer alegado ou provado, como lhe era imposto, que do facto resultassem danos irreparáveis ou de difícil reparação para si, diga-se para o seu agregado familiar.
Conclui-se que a Reforma do Contencioso Administrativo de 2004 teve um papel fundamental no caminho que se tem vindo a percorrer de forma a garantir a tutela jurisdicional cautelar, plena e efectiva.
As providências cautelares são uma prova Contencioso Administrativo pretende, cada vez mais, conferir aos particulares, formas céleres, directas e efectivas de garantia das suas pretensões. Pelo que a procedência da suspensão será atingida através da verificação cumulativa de requisitos que sumariamente podem ser identificados como: 1º - existência de periculum in mora; 2º - que haja um fumus boni juris; 3º - que haja proporcionalidade e adequação da providência[15].


Bibliografia:

·       ALMEIDA, Mário Aroso de,- O Novo Regime do Processo dos tribunais Administrativos, Almedina, 2005;
·       ALMEIDA, Mário Aroso de/ CADILHA, Carlos Alberto Fernandes- Comentário ao Código de Processo dos Tribunais Administrativos, Almedina, 2005;
·       SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise- Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativa, Almedina, 2009;
·       Andrade, José Carlos Vieira – A Justiça Administrativa (Lições), Almedina, 2009, 10ª edição;
·       Quadros, Fausto de – Algumas considerações gerais sobre a Reforma do Contencioso Administrativo, em especial, as Providências Cautelares, in Reforma do Contencioso Administrativo, vol. I, Coimbra Editora, 2003.




[1] Serra, Manuel Fernando dos Santos – Breve apontamento sobre as Providências Cautelares no Novo Contencioso Administrativo, Coimbra Editora, 2006
[2] Ac. Do STA de 18/3/2010-proc. Nº105/10
[3] Cfr. M. Aroso de Almeida, “Manual de Processo Administrativo”, pág. 453
[4] Intervenção do Conselheiro Manuel Fernando dos Santos Serra, presidente do Supremo Tribunal Administrativo, na Sessão de Abertura de um Seminário, a decorrer na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, decorrido entre os dias 17 e 19 de fevereiro de 2005
[5] Após um primeiro adiamento da data inicialmente prevista, o CPTA acaba por entrar em vigor a 01.01.2004, tendo sido aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro.
[6] Cfr. artigo 112.º, n.º 1 do CPTA.
[7] Cfr. Artigo 112, n.º 2 al. a) do CPTA
[8] Ac. do STA de 15/9/2004-Proc. nº620/2004.
[9] José Alberto dos Reis em “A Figura do Processo Cautelar”, in BMJ nº3, fls. 42 e ss.).
[10] O Debate Universitário, pág. 343
[11] Cfr. art. 120.º/1 CPTA, “fundado receito da constituição de uma situação de facto consumado”
[12] Comentário ao CPTA, págs. 706 e 707.
[13] Cfr. M. Aroso de Almeida, “Manual de Processo Administrativo”, pág. 453
[14] Cfr. ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 25.03.2010
[15] Ac. do STA de 15/9/2004-Proc. nº620/2004.

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