domingo, 4 de novembro de 2018

A Especialização dos Tribunais Administrativos


A Especialização dos Tribunais Administrativos

         Para analisar a especialização dos Tribunais Administrativos, devemos partir de duas premissas base: O direito de acesso a uma tutela jurisdicional efetiva é um direito fundamental[1]; e a Jurisdição Administrativa e Fiscal é autónoma[2] relativamente à ordem judicial, havendo, portanto, uma dualidade de jurisdições.
            Podemos encontrar a primeira premissa positivada no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, sendo de salientar o seu número 1 “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (...)” e seu número 4 “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável (...)”.
         Como manifestação da autonomia da ordem jurisdicional administrativa temos a existência, na nossa ordem jurídico constitucional, de tribunais Administrativos, o que se deve ao reconhecimento da importância de uma jurisdição especializada em razão da complexidade e da quantidade de questões que se colocam no âmbito das relações jurídico administrativas[3]. A especialização, atualmente, já não se coloca apenas no âmbito de uma dualidade entre tribunais judicias e tribunais administrativos, levantando-se também dentro da própria jurisdição administrativa.
         Esta especialização evidencia-se designadamente na criação de regimes jurídicos especiais em determinadas áreas do direito administrativo, a saber: “a área da regulação, a contratação pública, o urbanismo, o ambiente, o direito dos estrangeiros, a responsabilidade civil extracontratual, incluindo a pré contratual”[4], e na criação de juízos administrativos especializados, estes últimos que serão analisados com mais detalhe ao longo deste trabalho.
         No artigo 8º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante designado por ETAF) podemos encontrar os órgãos da jurisdição administrativa e fiscal: o Supremo Tribunal Administrativo, os tribunais centrais administrativos, os tribunais administrativos de circulo e os tribunais tributários[5].
         Aos tribunais administrativos de circulo compete, tendo em conta o disposto no artigo 44º do ETAF, “conhecer, em primeira instancia, de todos os processos do âmbito de jurisdição administrativa e fiscal que incidam sobre matéria administrativa e cuja competência, em primeiro grau de jurisdição, não esteja reservada aos tribunais superiores”[6].
         Num prazo de aproximadamente 20 anos, passámos de 3 tribunais de primeira instância para 16 e de aproximadamente 26 juízes para 176[7]. A recente revisão do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais acolheu a especialização nos tribunais administrativos de círculo e nos tribunais tributários, havendo em cima da mesa propostas mais detalhadas que vêm concretizar a criação de juízos de competência especializada, ao nível dos tribunais de primeira instância, designadamente, a Proposta de Lei de alteração ao ETAF e a Proposta de Decreto-Lei que vem concretizar a primeira[8]. Trata-se do reflexo do alargamento do âmbito de jurisdição administrativa, que levou aos tribunais administrativos mais litígios, defrontando-se o juiz administrativo com reptos[9] tão complexos quanto a complexidade e a especificidade das normas que fazem parte do ordenamento administrativo[10].

         O ETAF, prevê no seu artigo 9º, nº7, a criação de secções especializadas ou tribunais especializados mediante decreto-lei[11]. Não obstante, ainda que esta especialização se encontre prevista, não foi, até ao momento, levada a cabo, não tendo sido criada qualquer secção ou tribunal especializado[12].
         A proposta de lei em curso, relativa à especialização dos tribunais administrativos revoga o nº7 do artigo 9º e altera os números 4, 5 e 6, permanecendo a prerrogativa de agregação e de desdobramento dos tribunais administrativos de círculo, conforme consta do nº1 do supra mencionado artigo, quando a quantidade e a complexidade dos processos o justifiquem, em juízos de competência especializada[13]. Com enfoque no assunto aqui tratado, a já referida proposta introduz de forma detalhada, no art. 9º nº5 do ETAF os níveis de especialização relativamente aos quais se prevê a criação de juízos de competência especializada, em específico: o juízo administrativo comum; o juízo administrativo social; juízo de contratos públicos; e juízo de urbanismo, ambiente e ordenamento do território.[14]  Aos já mencionados juízos de competência especializada pode, por decreto-lei, atribuir-se jurisdição alargada, em função da complexidade e volume dos processos[15].
         Ao juízo administrativo comum atribui-se competência residual, cabendo-lhe conhecer dos processos relativos a matéria administrativa que não seja atribuída a outros juízos de competência especializada. O juízo administrativo social, tem competência para conhecer dos processos relativos a litígios em matéria de emprego público e da sua formação, e relacionados com formas públicas ou privadas de proteção social. Relativamente ao juízo administrativo de contratos públicos, este conhece dos processos relativos à validade de atos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos administrativos. Por fim, o juízo de urbanismo, ambiente e ordenamento do território, conhece os processos relativos a litígios no âmbito destas matérias que se encontrem sujeitas à jurisdição administrativa, e as demais matérias que lhe sejam atribuídas por lei[16].
         O desiderato da especialização é o de dar resposta às elevadas pendências, que podem ser constatadas por dados estatísticos em determinadas áreas[17], sendo uma medida que possibilita dar resposta e frear o aumento de pendências[18]; e visa, através da criação de estruturas jurisdicionais, não só dar resposta a estes processos pendentes, mas também fazê-lo com um maior rigor e qualidade científicos[19]. No que a este ultimo aspeto concerne, a especialização pretende cobrir uma cada vez maior tecnicidade da vida económica e social, permitindo que a divisão de tarefas leve a um tratamento mais célere e com maior eficiência das matérias[20],  próprio da divisão de tarefas incumbida a profissionais especializados[21], tratamento este que será também mais esclarecido, com uma maior qualidade em termos de resposta e de produção e uniformização de jurisprudência administrativa[22].

A análise de dados estatísticos relativos ao volume processual em determinadas áreas, como supramencionado, em articulação com o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, permitiu identificar os tribunais administrativos de círculo com volume processual considerável em determinadas áreas de competência dos juízos especializados, procedendo-se ao desdobramento dos tribunais nessas áreas[23]; daqui resultou a proposta de decreto-lei acerca dos juízos de competência especializada cujo objeto se encontra no artigo 1º e nos diz que: “O presente decreto-lei procede à criação de juízos de competência especializada, nos termos dos artigos 9º e 9º-A do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de fevereiro.”[24].
            Destarte, é de salientar a criação, por este decreto-lei, do juízo de competência especializada administrativa de contratos públicos no tribunal administrativos de círculo de Lisboa, com jurisdição alargada sobre as áreas e jurisdição dos tribunais administrativos de círculo de Almada, Lisboa e Sintra. O mesmo se passa com o tribunal administrativo e fiscal do Porto que integra um juízo de competência especializada de contratos públicos, com jurisdição alargada sobre o conjunto das áreas de jurisdição atribuídas aos tribunais administrativos de círculo de Aveiro, Braga, Penafiel e Porto[25].             Os juízos especializados, previstos na acima referida proposta de decreto-lei, iniciam o seu funcionamento na data em que for determinada a respetiva instalação, por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça[26].
         Nos termos do disposto no art. 36º, nº1, al. t) da proposta de lei, compete ao presidente de cada tribunal central administrativo conhecer os conflitos de competência entre tribunais de círculo, tribunais tributários ou juízos de competência especializada[27].
         Ao criar estes juízos o legislador deveria ter acautelado não só quem resolve os conflitos de competência, mas também, qual o critério que deve ser utilizado na delimitação entre matérias especializadas.
         Nas palavras de Carla Amado Gomes, o legislador deveria ter criado “um critério de desempate em caso de sobreposição”, critério esse que “poderia ser o da natureza das normas preponderantes para a resolução do litígio (v.g., uma questão sobre a admissibilidade de critérios ecológicos de contratação deve ser decidida em sede de instância especializada neste ultimo domínio; já a validade material de um contrato administrativo de parceria entre uma entidade gestora de parque natural e um privado para promover a biodiversidade deve ser apreciada pelo juízo especializado em Ambiente)”[28].

         Para uma eficiente criação de secções especializadas de julgamento, seria igualmente avisado promover as condições de formação especializada dos juízes, nomeadamente, através do alargamento do tempo de formação no ramo do Direito Administrativo[29], e para que esta formação fosse sólida o Estado deveria assegurar condições de formação de juízes administrativos. Em adição, mantendo o Ministério Público nos tribunais administrativos, também estes magistrados deveriam receber formação especializada[30].

         A inserção da especialização apenas na 1ª instância afigura-se acertada, além de que é prematura a introdução da “especialização dos tribunais superiores sem antes vivenciar a experiencia de alguns anos de funcionamento”[31].

            Na nossa opinião, a especialização dos tribunais administrativos origina benefícios tais como, uma tutela jurisdicional efetiva com decisões em prazo razoável que permitem agilizar as decisões dos tribunais de forma a que estas se tornem mais céleres e de maneira a que os processos não se acumulem. Mais, proporciona decisões sob a forma de jurisprudência com um maior rigor científico, que vão de encontro com as exigências dos nossos dias. O legislador não deve esquecer que concomitantemente com estes aspetos, é necessário acautelar critérios de delimitação de matérias especializadas e meios de formação de juízes no sentido da sua especialização.

            Salienta-se, por fim, que a reforma legislativa não é o único meio de solucionar problemas de justiça, mesmo que as reformas legislativas sejam úteis, estas devem ser executadas em conformidade com os valores que se encontram na base da criação das mesmas, caso contrário, de nada serviriam[32]. É o que sucede, hoje em dia, com a especialização dos tribunais administrativos prevista na lei, sem, no entanto, ter sido levada à prática. A reforma em curso, no âmbito da especialização da jurisdição Administrativa, é importante, mas, para que seja frutuosa necessita de medidas concretas que concretizem os desideratos que estas propostas, de lei e de decreto-lei, se propõem a cumprir.

Maria Carolina Santos
   
Bibliografia:
Ana Celeste Carvalho, Como é especial a Jurisdição Administrativa e Fiscal... sobre a especialização dos Tribunais Administrativos - In Revista de Direito Administrativo, 2018, nº 3.

CARLA AMADO GOMES, Sobre as propostas de reforma da legislação processual administrativa e fiscal: notas tópicas - In Revista de Direito Administrativo, 2018, nº 3.

CARLOS CARVALHO, Breves considerandos em torno da reforma da jurisdição administrativa em debate - In Revista de Direito Administrativo, 2018, nº 3.

MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Breves considerações sobre alguns aspetos relativos à jurisdição administrativa e fiscal- in Julgar, nº20, 2013.

MÁRIO AROSO DE ALMEIDA - Manual de Processo Administrativo, Lisboa, Almedina, 2017, 3ª Ed.




[1] Vide artigo 20º da CRP.
[2] Ana Celeste Carvalho, Como é especial a Jurisdição Administrativa e Fiscal... sobre a especialização dos Tribunais Administrativos - In Revista de Direito Administrativo, 2018, nº 3, p. 22.
[3] MÁRIO AROSO ALMEIDA - Manual de Processo Administrativo, Lisboa, Almedina, 2017, 3ª Ed., p. 117.
[4] Ana Celeste Carvalho, op. cit., p. 23.
[5] Vide artigo 8º do ETAF.
[6] Vide artigo 44º do ETAF.
[7] CARLOS CARVALHO, Breves considerandos em torno da reforma da jurisdição administrativa em debate - In Revista de Direito Administrativo, 2018, nº 3, p. 37.
[8] Veja-se as propostas legislativas para a reforma da jurisdição Administrativa e Fiscal.
[9] CARLOS CARVALHO, op. cit., p. 37.
[10] Cfr. a exposição de motivos relativa à Proposta de Lei de alteração ao ETAF.
[11] Vide artigo 9º do ETAF.
[12] Ana Celeste Carvalho, op. cit., p. 23.
[13] Ana Celeste Carvalho, op. cit., p. 23.
[14] Vide artigo 9º da Proposta de Lei de alteração ao ETAF.
[15] Idem.
[16] Cfr. a exposição de motivos relativa à Proposta de Lei de alteração ao ETAF.
[17] Idem.
[18] CARLOS CARVALHO, op. cit., p. 40.
[19] Ana Celeste Carvalho, op. cit., p. 23.
[20] Cfr. a exposição de motivos relativa à Proposta de Decreto-Lei relativa aos Juízos de competência especializada.
[21]CARLOS CARVALHO, op. cit., p. 40.
[22] Cfr. a exposição de motivos relativa à Proposta de Decreto-Lei relativa aos Juízos de competência especializada.
[23] Idem.
[24] Vide artigo 1º da Proposta de Decreto-Lei relativa aos Juízos de competência especializada.
[25] Vide artigos 2º e 12º da Proposta de Decreto-Lei relativa aos Juízos de competência especializada.
[26] Vide artigo 16º da Proposta de Decreto-Lei relativa aos Juízos de competência especializada.
[27] Vide artigo 36º da Proposta de Lei de alteração ao ETAF.
[28] CARLA AMADO GOMES, Sobre as propostas de reforma da legislação processual administrativa e fiscal: notas tópicas - In Revista de Direito Administrativo, 2018, nº 3, p. 34.
[29] CARLA AMADO GOMES, op. cit., pp. 34-35.
[30]MARIO AROSO ALMEIDA, Breves considerações sobre alguns aspetos relativos à jurisdição administrativa e fiscal - in Julgar, nº20, 2013, p. 176.
[31] Ana Celeste Carvalho, op. cit., p. 25.
[32] MARIO AROSO ALMEIDA, Breves considerações sobre alguns aspetos relativos à jurisdição administrativa e fiscal - in Julgar, nº20, 2013, pp.176-177.

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