A Especialização dos Tribunais
Administrativos
Para
analisar a especialização dos Tribunais Administrativos, devemos partir de duas
premissas base: O direito de acesso a uma tutela jurisdicional efetiva é um
direito fundamental[1]; e
a Jurisdição Administrativa e Fiscal é autónoma[2]
relativamente à ordem judicial, havendo, portanto, uma dualidade de
jurisdições.
Podemos
encontrar a primeira premissa positivada no artigo 20º da Constituição da
República Portuguesa, sendo de salientar o seu número 1 “A todos é assegurado o
acesso ao direito e aos tribunais para a defesa dos seus direitos e interesses
legalmente protegidos (...)” e seu número 4 “Todos têm direito a que uma causa
em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável (...)”.
Como
manifestação da autonomia da ordem jurisdicional administrativa temos a
existência, na nossa ordem jurídico constitucional, de tribunais
Administrativos, o que se deve ao reconhecimento da importância de uma
jurisdição especializada em razão da complexidade e da quantidade de questões
que se colocam no âmbito das relações jurídico administrativas[3].
A especialização, atualmente, já não se coloca apenas no âmbito de uma
dualidade entre tribunais judicias e tribunais administrativos, levantando-se
também dentro da própria jurisdição administrativa.
Esta
especialização evidencia-se designadamente na criação de regimes jurídicos
especiais em determinadas áreas do direito administrativo, a saber: “a área da
regulação, a contratação pública, o urbanismo, o ambiente, o direito dos
estrangeiros, a responsabilidade civil extracontratual, incluindo a pré
contratual”[4], e
na criação de juízos administrativos especializados, estes últimos que serão
analisados com mais detalhe ao longo deste trabalho.
No
artigo 8º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante designado
por ETAF) podemos encontrar os órgãos da jurisdição administrativa e fiscal: o
Supremo Tribunal Administrativo, os tribunais centrais administrativos, os tribunais
administrativos de circulo e os tribunais tributários[5].
Aos
tribunais administrativos de circulo compete, tendo em conta o disposto no
artigo 44º do ETAF, “conhecer, em primeira instancia, de todos os processos do
âmbito de jurisdição administrativa e fiscal que incidam sobre matéria
administrativa e cuja competência, em primeiro grau de jurisdição, não esteja
reservada aos tribunais superiores”[6].
Num
prazo de aproximadamente 20 anos, passámos de 3 tribunais de primeira instância
para 16 e de aproximadamente 26 juízes para 176[7].
A recente revisão do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais acolheu a
especialização nos tribunais administrativos de círculo e nos tribunais tributários,
havendo em cima da mesa propostas mais detalhadas que vêm concretizar a criação
de juízos de competência especializada, ao nível dos tribunais de primeira
instância, designadamente, a Proposta de Lei de alteração ao ETAF e a Proposta
de Decreto-Lei que vem concretizar a primeira[8].
Trata-se do reflexo do alargamento do âmbito de jurisdição administrativa, que
levou aos tribunais administrativos mais litígios, defrontando-se o juiz
administrativo com reptos[9]
tão complexos quanto a complexidade e a especificidade das normas que fazem
parte do ordenamento administrativo[10].
O
ETAF, prevê no seu artigo 9º, nº7, a criação de secções especializadas ou
tribunais especializados mediante decreto-lei[11].
Não obstante, ainda que esta especialização se encontre prevista, não foi, até
ao momento, levada a cabo, não tendo sido criada qualquer secção ou tribunal
especializado[12].
A
proposta de lei em curso, relativa à especialização dos tribunais
administrativos revoga o nº7 do artigo 9º e altera os números 4, 5 e 6, permanecendo
a prerrogativa de agregação e de desdobramento dos tribunais administrativos de
círculo, conforme consta do nº1 do supra mencionado artigo, quando a quantidade
e a complexidade dos processos o justifiquem, em juízos de competência
especializada[13]. Com
enfoque no assunto aqui tratado, a já referida proposta introduz de forma
detalhada, no art. 9º nº5 do ETAF os níveis de especialização relativamente aos
quais se prevê a criação de juízos de competência especializada, em específico:
o juízo administrativo comum; o juízo administrativo social; juízo de contratos
públicos; e juízo de urbanismo, ambiente e ordenamento do território.[14]
Aos já mencionados juízos de competência
especializada pode, por decreto-lei, atribuir-se jurisdição alargada, em função
da complexidade e volume dos processos[15].
Ao
juízo administrativo comum atribui-se competência residual, cabendo-lhe
conhecer dos processos relativos a matéria administrativa que não seja
atribuída a outros juízos de competência especializada. O juízo administrativo social,
tem competência para conhecer dos processos relativos a litígios em matéria de
emprego público e da sua formação, e relacionados com formas públicas ou
privadas de proteção social. Relativamente ao juízo administrativo de contratos
públicos, este conhece dos processos relativos à validade de atos pré-contratuais
e à interpretação, validade e execução de contratos administrativos. Por fim, o
juízo de urbanismo, ambiente e ordenamento do território, conhece os processos
relativos a litígios no âmbito destas matérias que se encontrem sujeitas à jurisdição
administrativa, e as demais matérias que lhe sejam atribuídas por lei[16].
O
desiderato da especialização é o de dar resposta às elevadas pendências, que
podem ser constatadas por dados estatísticos em determinadas áreas[17],
sendo uma medida que possibilita dar resposta e frear o aumento de pendências[18];
e visa, através da criação de estruturas jurisdicionais, não só dar resposta a estes
processos pendentes, mas também fazê-lo com um maior rigor e qualidade científicos[19].
No que a este ultimo aspeto concerne, a especialização pretende cobrir uma cada
vez maior tecnicidade da vida económica e social, permitindo que a divisão de
tarefas leve a um tratamento mais célere e com maior eficiência das matérias[20], próprio da divisão de tarefas incumbida a
profissionais especializados[21],
tratamento este que será também mais esclarecido, com uma maior qualidade em
termos de resposta e de produção e uniformização de jurisprudência
administrativa[22].
A análise de dados estatísticos
relativos ao volume processual em determinadas áreas, como supramencionado, em
articulação com o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais,
permitiu identificar os tribunais administrativos de círculo com volume
processual considerável em determinadas áreas de competência dos juízos
especializados, procedendo-se ao desdobramento dos tribunais nessas áreas[23];
daqui resultou a proposta de decreto-lei acerca dos juízos de competência
especializada cujo objeto se encontra no artigo 1º e nos diz que: “O presente decreto-lei procede à criação de juízos de
competência especializada, nos termos dos artigos 9º e 9º-A do Estatuto dos
Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de
fevereiro.”[24].
Destarte, é de salientar a criação, por este decreto-lei, do
juízo de competência especializada administrativa de contratos públicos no
tribunal administrativos de círculo de Lisboa, com jurisdição alargada sobre as
áreas e jurisdição dos tribunais administrativos de círculo de Almada, Lisboa e
Sintra. O mesmo se passa com o tribunal administrativo e fiscal do Porto que
integra um juízo de competência especializada de contratos públicos, com
jurisdição alargada sobre o conjunto das áreas de jurisdição atribuídas aos tribunais
administrativos de círculo de Aveiro, Braga, Penafiel e Porto[25].
Os juízos especializados,
previstos na acima referida proposta de decreto-lei, iniciam o seu
funcionamento na data em que for determinada a respetiva instalação, por
portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça[26].
Nos
termos do disposto no art. 36º, nº1, al. t) da proposta de lei, compete ao
presidente de cada tribunal central administrativo conhecer os conflitos de
competência entre tribunais de círculo, tribunais tributários ou juízos de
competência especializada[27].
Ao
criar estes juízos o legislador deveria ter acautelado não só quem resolve os
conflitos de competência, mas também, qual o critério que deve ser utilizado na
delimitação entre matérias especializadas.
Nas
palavras de Carla Amado Gomes, o legislador deveria ter criado “um critério de
desempate em caso de sobreposição”, critério esse que “poderia ser o da
natureza das normas preponderantes para a resolução do litígio (v.g., uma
questão sobre a admissibilidade de critérios ecológicos de contratação deve ser
decidida em sede de instância especializada neste ultimo domínio; já a validade
material de um contrato administrativo de parceria entre uma entidade gestora
de parque natural e um privado para promover a biodiversidade deve ser apreciada
pelo juízo especializado em Ambiente)”[28].
Para
uma eficiente criação de secções especializadas de julgamento, seria igualmente
avisado promover as condições de formação especializada dos juízes,
nomeadamente, através do alargamento do tempo de formação no ramo do Direito
Administrativo[29], e
para que esta formação fosse sólida o Estado deveria assegurar condições de
formação de juízes administrativos. Em adição, mantendo o Ministério Público
nos tribunais administrativos, também estes magistrados deveriam receber
formação especializada[30].
A
inserção da especialização apenas na 1ª instância afigura-se acertada, além de
que é prematura a introdução da “especialização dos tribunais superiores sem
antes vivenciar a experiencia de alguns anos de funcionamento”[31].
Na
nossa opinião, a especialização dos tribunais administrativos origina
benefícios tais como, uma tutela jurisdicional efetiva com decisões em prazo
razoável que permitem agilizar as decisões dos tribunais de forma a que estas
se tornem mais céleres e de maneira a que os processos não se acumulem. Mais, proporciona
decisões sob a forma de jurisprudência com um maior rigor científico, que vão
de encontro com as exigências dos nossos dias. O legislador não deve esquecer
que concomitantemente com estes aspetos, é necessário acautelar critérios de
delimitação de matérias especializadas e meios de formação de juízes no sentido
da sua especialização.
Salienta-se,
por fim, que a reforma legislativa não é o único meio de solucionar problemas
de justiça, mesmo que as reformas legislativas sejam úteis, estas devem ser
executadas em conformidade com os valores que se encontram na base da criação
das mesmas, caso contrário, de nada serviriam[32].
É o que sucede, hoje em dia, com a especialização dos tribunais administrativos
prevista na lei, sem, no entanto, ter sido levada à prática. A reforma em curso,
no âmbito da especialização da jurisdição Administrativa, é importante, mas,
para que seja frutuosa necessita de medidas concretas que concretizem os
desideratos que estas propostas, de lei e de decreto-lei, se propõem a cumprir.
Maria Carolina Santos
Bibliografia:
Ana
Celeste Carvalho,
Como é especial a Jurisdição Administrativa e Fiscal... sobre a especialização
dos Tribunais Administrativos - In
Revista de Direito Administrativo, 2018, nº 3.
CARLA
AMADO
GOMES,
Sobre as propostas de reforma da legislação processual administrativa e fiscal:
notas tópicas - In Revista de Direito Administrativo,
2018, nº 3.
CARLOS CARVALHO, Breves considerandos em torno
da reforma da jurisdição administrativa em debate - In Revista de Direito Administrativo, 2018, nº 3.
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Breves considerações sobre
alguns aspetos relativos à jurisdição administrativa e fiscal- in Julgar, nº20, 2013.
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA - Manual de Processo Administrativo, Lisboa, Almedina, 2017, 3ª Ed.
[1] Vide artigo 20º da CRP.
[2] Ana Celeste Carvalho, Como é especial a
Jurisdição Administrativa e Fiscal... sobre a especialização dos Tribunais
Administrativos - In Revista de Direito Administrativo,
2018, nº 3, p. 22.
[3] MÁRIO
AROSO ALMEIDA - Manual de Processo Administrativo, Lisboa,
Almedina, 2017, 3ª Ed., p. 117.
[5] Vide artigo 8º do ETAF.
[6] Vide artigo 44º do ETAF.
[7] CARLOS CARVALHO, Breves
considerandos em torno da reforma da jurisdição administrativa em debate - In Revista de Direito Administrativo,
2018, nº 3, p. 37.
[8] Veja-se as propostas legislativas para a reforma da
jurisdição Administrativa e Fiscal.
[14] Vide artigo 9º da Proposta de Lei de
alteração ao ETAF.
[15] Idem.
[16] Cfr. a
exposição de motivos relativa à Proposta de Lei de alteração ao ETAF.
[20] Cfr. a exposição de motivos relativa à Proposta de Decreto-Lei
relativa aos Juízos de competência especializada.
[22] Cfr. a exposição de motivos relativa à Proposta de Decreto-Lei
relativa aos Juízos de competência especializada.
[23] Idem.
[25] Vide
artigos 2º e 12º da Proposta de Decreto-Lei relativa aos Juízos de competência especializada.
[28] CARLA AMADO GOMES, Sobre as propostas de
reforma da legislação processual administrativa e fiscal: notas tópicas - In Revista de Direito Administrativo,
2018, nº 3, p. 34.
[30]MARIO
AROSO ALMEIDA, Breves
considerações sobre alguns aspetos relativos à jurisdição administrativa e fiscal - in Julgar, nº20, 2013, p. 176.
[32]
MARIO
AROSO ALMEIDA, Breves
considerações sobre alguns aspetos relativos à jurisdição administrativa e
fiscal - in Julgar, nº20, 2013, pp.176-177.
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