sábado, 8 de dezembro de 2018

Recurso hierárquico constitucional ou inconstitucional? Jéssica Costa


                                                                                                   Jéssica Costa, 26745, subturma 10

Recurso hierárquico constitucional ou inconstitucional?

O recurso hierárquico constitui um dos mecanismos através dos quais o superior hierárquico pode exercer os seus poderes de intervenção sobre o resultado do exercício das competências do subalterno, designadamente, os poderes de supervisão e de substituição, assegurando-se assim a preferência de princípio pela sua vontade sobre a dos escalões hierarquicamente inferiores, em coerência com as suas responsabilidades e legitimidade democrática acrescidas. Nessa medida, constitui um instrumento fundamental da hierarquia administrativa[1]. O regime do recurso hierárquico encontra-se consagrado nos artigos 193º e seguintes do CPA, tendo sido largamente analisado pela doutrina.

O professor Vasco Pereira da Silva afirma que impugnáveis são todos os atos administrativos que, em razão da sua “situação”, sejam suscetíveis de provocar uma lesão ou de afetar imediatamente posições subjetivas de particulares. Esta noção de ato é tão importante que o legislador lhe atribuiu natureza de direito fundamental, incluindo expressamente a faculdade de impugnar quaisquer atos administrativos suscetíveis de lesar posições subjetivas dos particulares no próprio conteúdo do direito de acesso à justiça administrativa, artigo 268.º4 da CRP (Constituição da República Portuguesa)[2].

É hoje pacifico para toda a doutrina que o recurso hierárquico necessário, como regra geral, foi afastado pelo CPTA (Código Procedimento Tribunais Administrativos), já que este não o consagra em parte alguma, instituindo um regime jurídico que permite o imediato acesso à apreciação contenciosa. Tal conclusão resulta de vários fatores. A necessidade de prévio recurso hierárquico para aceder ao recurso contencioso era um pressuposto processual, o CPTA vem eliminar tal pressuposto ao prever no artigo 51.º que são impugnáveis todos os atos administrativos com eficácia externa: os atos praticados por subalternos cabem na previsão do artigo 51.º[3]; o regime do 59.º vem uniformizar os efeitos dos recursos hierárquico necessário e facultativo: atribuição de efeitos suspensivo do prazo de impugnação contenciosa – nº4 – revogando o artigo 164º CPA[4]. Mesmo nos casos em que o particular usou previamente uma garantia administrativa tal não obsta à imediata impugnação contenciosa. É assim pacifico para toda a doutrina que o recurso hierárquico necessário foi afastado pelo CPTA, instituindo um regime jurídico que permite o imediato acesso à apreciação contenciosa. A doutrina considera então que o recurso à impugnação judicial não exige um prévio esgotamento de todos os meios administrativos disponíveis. Esta posição resulta, como já referi acima, das soluções consagradas nos artigos 51.º e 59.º4 e 5 do CPTA.  Nas palavras do professor Mário Aroso de Almeida, “o CPTA não exige, em termos gerais, que os atos administrativos tenham sido objeto de prévia impugnação administrativa para que possam ser objeto de impugnação contenciosa”[5], posição perfilhada pelo professor Vasco Pereira da Silva, que salienta que “o legislador da reforma veio afastar, de modo expresso e inequívoco, a necessidade de recurso hierárquico como condição de acesso à justiça administrativa”[6]. O professor Vasco Pereira da Silva afirma ainda que a exigência do prévio esgotamento das garantias administrativas como condição necessária de acesso aos tribunais constituía uma das mais persistentes manifestações dos “traumas de infância” do Contencioso Administrativo, nos tempos do administrador-juiz[7].

Então o que aconteceu às normas do CPA relativamente ao recurso hierárquico? Em causa agora está a conformidade legal (constitucional) das regras especiais, constantes de diplomas avulsos, que continuaram, mesmo após a revisão, a consagrar impugnações administrativas necessárias. Será, nestes casos, o recurso hierárquico necessário compatível com a nova regra geral do CPTA e com o artigo 264.º4 CRP? De um lado, temos os que defendem uma interpretação restritiva ou minimalista deste novo regime jurídico. Para os professores Mário Aroso de Almeida e Vieira de Andrade, o novo regime não afetou as regras especiais que instituem recursos hierárquicos necessários[8]. Pelo que, na ausência de determinação legal expressa em sentido contrário, deve entender-se que os atos administrativos com eficácia externa são imediatamente impugnáveis perante os tribunais administrativos, sem necessidade da prévia utilização de qualquer via de impugnação administrativa. As decisões administrativas continuam, no entanto, a estar sujeitas a impugnação administrativa necessária nos casos em que isso esteja expressamente previsto na lei, em resultado de uma opção consciente e deliberada do legislador, quando este a considere justificada[9]. O professor Vasco Pereira da Silva não concorda que se faça uma interpretação restritiva, pois afirma que se está a contrariar as disposições constitucionais como o regime consagrado no CPA, e cujas justificações parecem residir mais em considerações de política legislativa do que em argumentos jurídicos[10]. O professor aponta várias críticas pelas quais afirma que não é de adotar uma interpretação restritiva: primeiro, considerar que, a partir de agora, o recurso hierárquico passou a ser sempre “desnecessário”, mas que ele pode continuar a ser exigido como condição prévia de impugnação, mesmo quando já não pode mais continuar a ser comiserado como condição de impugnação, ou como pressuposto processual, é uma contradição insanável[11]; em segundo, diz-se que o CPTA revogou a “regra geral” do recurso hierárquico do CPA (Código Processo Administrativo) mas não as regras especiais. Admitindo que isso era assim, seria forçoso concluir que, antes da reforma, tais normas ditas “especiais” não possuíam qualquer especialidade, já que eram apenas a confirmação da “regra geral”[12]; em terceiro, do ponto de vista constitucional, se já era difícil antes da reforma considerar que a exigência do recurso hierárquico era inconstitucional, parece agora para o professor, uma “missão impossível”, - depois da concretização legislativa do direito fundamental de acesso à justiça administrativa mediante a consagração da regra da desnecessidade de impugnação administrativa prévia ao acesso ao juiz,- pudessem existir exceções a este regime[13]; em quarto lugar, o CPA concretizando o direito fundamental de acesso ao Contencioso Administrativo, artigo 268.º4 CRP (Constituição da República Portuguesa), estabelece um principio de “promoção do acesso à justiça, artigo 8.º do CPA, segundo o qual o “mérito” deve prevalecer sobre as “formalidades” o que implica, a regra segundo a qual devem ser evitadas diligencias inúteis. Para o professor não é possível imaginar nada mais inútil e despropositado do que continuar a exigir uma qualquer garantia administrativa prévia, quando tal exigência deixou de ser um pressuposto processual de impugnação de atos administrativos[14].

Do outro lado, temos então os autores que defendem uma interpretação mais ampla ou maximalista do regime, entendendo que o legislador da reforma afastou, de modo expresso e inequívoco, a existência de recurso hierárquico necessário, independentemente da sua fonte, afetando normas gerais e especiais. É a posição dos professores Vasco Pereira da Silva e Paulo Otero[15]. Já antes da reforma, o professor Vasco Pereira da Silva defendia a inconstitucionalidade da regra do recurso hierárquico necessário, com base nos seguintes argumentos: princípio constitucional da plenitude da tutela dos direitos dos particulares, artigo 268.º4 CRP, pois a inadmissibilidade de recurso contencioso, quando não tenha existido previamente o recurso hierárquico necessário, equivale, para todos os efeitos, a uma verdadeira negação do direito fundamental de recurso contencioso[16]; do princípio constitucional da separação entre a Administração e a Justiça, artigos 114.º, 205.º e seguintes, 266.º e seguintes da CRP, por fazer precludir o direito de acesso ao tribunal em resultado da não utilização de uma garantia administrativa (que não poderá ser outra coisa senão facultativa)[17]; o princípio constitucional da desconcentração administrativa, artigo 267.º2 CRP, que implica a imediata recorribilidade dos atos dos subalternos sempre que lesivos, sem prejuízo da logica do modelo hierárquico de organização administrativa, pois o superior continua a dispor de competência revogatória, artigo 142.º CPA[18]; princípio da efetividade da tutela, artigo 268.º4 CRP, em razão do efeito preclusivo da impugnabilidade da decisão administrativa, no caso de não ter havido interposição previa de recurso hierárquico, no prazo de 30 dias, artigo 168.º2 CPA, reduzindo assim drasticamente o prazo de impugnação de atos administrativos, o qual por ser manifestamente curto, poderia equivaler à inutilização da possibilidade de exercício do direito e suscetível de ser equiparada à lesão do próprio conteúdo essencial do direito[19]. Tal posição não era sufragada pela jurisprudência nem por importantes setores da doutrina[20]. O afastamento inequívoco e definitivo da necessidade de recurso hierárquico como pressuposto de impugnação contenciosa resulta então: da “consagração da impugnabilidade contenciosa de qualquer ato administrativo que seja suscetível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares ou que seja dotado de eficácia externa”(artigo 51.º1, CPTA)[21]; da “atribuição de efeito suspensivo do prazo de impugnação contenciosa do ato administrativo à utilização de garantias administrativas” (artigo 59.º4, CPTA – passando o recurso hierárquico necessário, ainda que desnecessário, a ser útil) o que significa uma maior eficácia à utilização de garantias administrativas, dado que o particular, que decida optar previamente por essa via, sabe agora que o prazo para a impugnação contenciosa só voltará a correr depois da decisão do seu pedido de reapreciação do ato administrativo. Da perspetiva do particular, passa a valer a ena solicitar previamente uma “segunda opinião” por parte da Administração[22]; do “estabelecimento da regra segundo a qual, mesmo nos casos em que o particular utilizou previamente uma garantia administrativa e beneficiou da consequente suspensão do prazo de impugnação contenciosa, isso não impede a possibilidade de imediata impugnação do ato administrativo” (artigo 59.º5, CPTA)[23]. O que significa o afastamento inequívoco da “necessidade” de recurso hierárquico, bem como de qualquer outra garantia administrativa, já que doravante é sempre possível ao particular aceder de imediato à via contenciosa, independentemente de ter feito uso ou não dessa via graciosa. Esta posição é rejeitada/criticada pelo professor Mário Aroso de Almeida que, apoiando-se nas posições do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo, entende não caber “à Constituição estabelecer os pressupostos de que possa depender a impugnação dos atos administrativos, em termos de se poder afirmar que eles só são legítimos se forem objeto de expressa previsão constitucional” e ainda que as “decisões administrativas continuam (…) a estar sujeitas a impugnação administrativa necessária nos casos e que isso esteja expressamente previsto na lei, em resultado de uma opção consciente e deliberada do legislador, quando este a considere justificada”[24].

Então será que faz sentido esta distinção entre recurso hierárquico necessário e facultativo? Nos termos do artigo 185.º1 CPA, o recurso hierárquico é necessário ou facultativo consoante o ato a impugnar seja ou não insuscetível de recurso contencioso, tal como acontecia quando um ato não era definitivamente vertical, ou seja, quando o ato fosse praticado por um subalterno em que, primeiramente, o impugnante teria que recorrer hierarquicamente dele (recurso hierárquico necessário) para que depois, eventualmente, este ato possa ser suscetível de recurso contencioso. Para autores como o Professor Vasco Pereira da Silva, que defendem que o recurso hierárquico necessário deixou de ter lugar no novo contencioso administrativo, já não faz sentido fazer tal distinção, pois esta existia apenas e unicamente para saber se o ato administrativo era ou não suscetível de recurso contencioso. Para outros autores, como o Professor Mário Aroso de Almeida, que defende, que o recurso hierárquico necessário poderá ser admitido quando resulte de uma opção consciente e deliberada do legislador, obviamente que esta distinção faz todo o sentido e continua a ser atual. Assim, quando nada seja dito, deve entender-se que o ato pode ser imediatamente impugnável perante os tribunais administrativos, mas, se existir algum regime expresso na lei que preveja o recurso hierárquico necessário então, este deve ser observado. Considera-se assim em vigor as normas avulsas que impõem tal regime.



Em conclusão, partilho da posição do professor Vasco Pereira da Silva. É tarefa da Constituição da República Portuguesa estabelecer direitos fundamentais (como o direito de acesso à justiça) e princípios do Estado democrático de Direito como o princípio da tutela plena e efetiva dos direitos dos particulares, sendo que todas as disposições do legislador ordinário que os possam limitar ou contrariar são inconstitucionais. Isto porque considero que continuar a exigir a impugnação administrativa prévia ainda que em determinadas leis avulsas, constitui uma grave violação do princípio da tutela plena e efetiva dos direitos dos particulares, nomeadamente do direito de acesso à justiça, dando-se assim ao legislador ordinário uma margem de discricionariedade capaz de violar tal direito criando-se assim uma desigualdade entre pessoas que deviam ter o mesmo direito de acesso à justiça constitucionalmente consagrado. Este é o argumento principal que me leva a concordar com o professor. Persistir na regra do recurso hierárquico necessário “desnecessário” é uma ideia difícil de aceitar pois, continuar a exigir uma garantia administrativa prévia, quando tal exigência já deixou de ser pressuposto!











Bibliografia:

·       SOUSA, Marcelo Rebelo de, Direito Administrativo Geral, Tomo III, 2007;

·       SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no divã da psicanálise, 2005, Almedina;

·       ALMEIDA, Mário Aroso, O novo regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2005;



[1] SOUSA, Marcelo Rebelo de, Direito Administrativo Geral, Tomo III, 2007, pag.211;
[2] SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2005, pag.310;
[3] SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2005, pag.322;
[4] SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2005, pag.322.
[5] ALMEIDA, Mário Aroso, O novo regime do processo nos Tribunais Administrativos, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, pag.147;
[6] SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2005, pag.318;
[7] SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2005, pag.319;
[8] ALMEIDA, Mário Aroso, O novo regime do processo nos Tribunais Administrativos, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, pag.147;
[9] ALMEIDA, Mário Aroso, O novo regime do processo nos Tribunais Administrativos, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, pag.147;
[10] SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2005, pag.326;
[11] SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2005, pag.327.
[12] SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2005, pag.328;
[13] SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2005, pag.329;
[14] SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2005, pag.331;
[15]OTERO, Paulo, Impugnações Administrativas, in “caderno da justiça administrativa”, n.º 28, Julho/Agosto, 2001, paginas 50 e seguintes;
[16] SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2005, pag.319;
[17] SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2005, pag.319.
[18] SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2005, pag.319-320;
[19] SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2005, pag.320;
[20]Acórdão n.º499/96, do Tribunal Constitucional, pronunciando-se no sentido da não inconstitucionalidade do recurso hierárquico necessário, e respetiva anotação feita por Vieira de Andrade “defesa do recurso hierárquico necessário” in “cadernos de justiça administrativa”, n.º0, Novembro/Dezembro de 1996, paginas 13 e seguintes.
[21] SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2005, pag.322;
[22] SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2005, pag.323;
[23] SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2005, pag.324.
[24] ALMEIDA, Mário Aroso, O novo regime do processo nos Tribunais Administrativos, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, pag.147.

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