Jéssica
Costa, 26745, subturma 10
Recurso hierárquico constitucional ou inconstitucional?
O recurso
hierárquico constitui um dos mecanismos através dos quais o superior
hierárquico pode exercer os seus poderes de intervenção sobre o resultado do exercício
das competências do subalterno, designadamente, os poderes de supervisão e de
substituição, assegurando-se assim a preferência de princípio pela sua vontade
sobre a dos escalões hierarquicamente inferiores, em coerência com as suas
responsabilidades e legitimidade democrática acrescidas. Nessa medida,
constitui um instrumento fundamental da hierarquia administrativa[1]. O regime do recurso hierárquico encontra-se
consagrado nos artigos 193º e seguintes do CPA, tendo sido largamente analisado
pela doutrina.
O professor
Vasco Pereira da Silva afirma que impugnáveis são todos os atos administrativos
que, em razão da sua “situação”, sejam suscetíveis de provocar uma lesão ou de
afetar imediatamente posições subjetivas de particulares. Esta noção de ato é
tão importante que o legislador lhe atribuiu natureza de direito fundamental,
incluindo expressamente a faculdade de impugnar quaisquer atos administrativos
suscetíveis de lesar posições subjetivas dos particulares no próprio conteúdo
do direito de acesso à justiça administrativa, artigo 268.º4 da CRP
(Constituição da República Portuguesa)[2].
É hoje pacifico para toda a doutrina que o recurso hierárquico necessário,
como regra geral, foi afastado pelo CPTA (Código Procedimento Tribunais
Administrativos), já que este não o consagra em parte alguma, instituindo um
regime jurídico que permite o imediato acesso à apreciação contenciosa. Tal
conclusão resulta de vários fatores. A necessidade de prévio recurso
hierárquico para aceder ao recurso contencioso era um pressuposto processual, o
CPTA vem eliminar tal pressuposto ao prever no artigo 51.º que são impugnáveis
todos os atos administrativos com eficácia externa: os atos praticados por
subalternos cabem na previsão do artigo 51.º[3];
o regime do 59.º vem uniformizar os efeitos dos recursos hierárquico necessário
e facultativo: atribuição de efeitos suspensivo do prazo de impugnação
contenciosa – nº4 – revogando o artigo 164º CPA[4].
Mesmo nos casos em que o particular usou previamente uma garantia
administrativa tal não obsta à imediata impugnação contenciosa. É assim
pacifico para toda a doutrina que o recurso hierárquico necessário foi afastado
pelo CPTA, instituindo um regime jurídico que permite o imediato acesso à
apreciação contenciosa. A doutrina
considera então que o recurso à impugnação judicial não exige um
prévio esgotamento de todos os meios administrativos disponíveis. Esta posição
resulta, como já referi acima, das soluções consagradas nos artigos 51.º e
59.º4 e 5 do CPTA. Nas palavras do professor Mário Aroso de Almeida, “o
CPTA não exige, em termos gerais, que os atos administrativos tenham sido
objeto de prévia impugnação administrativa para que possam ser objeto de
impugnação contenciosa”[5], posição
perfilhada pelo professor Vasco Pereira da Silva, que salienta que “o
legislador da reforma veio afastar, de modo expresso e inequívoco, a
necessidade de recurso hierárquico como condição de acesso à justiça
administrativa”[6]. O professor Vasco Pereira da Silva afirma ainda que
a exigência do prévio esgotamento das garantias administrativas como condição
necessária de acesso aos tribunais constituía uma das mais persistentes
manifestações dos “traumas de infância” do Contencioso Administrativo, nos
tempos do administrador-juiz[7].
Então o que aconteceu às normas do CPA
relativamente ao recurso hierárquico? Em causa agora está a conformidade legal (constitucional) das
regras especiais, constantes de diplomas avulsos, que continuaram, mesmo após a
revisão, a consagrar impugnações administrativas necessárias. Será, nestes
casos, o recurso hierárquico necessário compatível com a nova regra geral do
CPTA e com o artigo 264.º4 CRP? De um
lado, temos os que defendem uma interpretação restritiva ou minimalista deste
novo regime jurídico. Para os professores Mário Aroso de Almeida e Vieira de
Andrade, o novo regime não afetou as regras especiais que instituem recursos
hierárquicos necessários[8].
Pelo que, na ausência de determinação legal expressa em sentido contrário, deve
entender-se que os atos administrativos com eficácia externa são imediatamente
impugnáveis perante os tribunais administrativos, sem necessidade da prévia
utilização de qualquer via de impugnação administrativa. As decisões
administrativas continuam, no entanto, a estar sujeitas a impugnação
administrativa necessária nos casos em que isso esteja expressamente previsto
na lei, em resultado de uma opção consciente e deliberada do legislador, quando
este a considere justificada[9].
O professor Vasco Pereira da Silva não concorda que se faça uma interpretação
restritiva, pois afirma que se está a contrariar as disposições constitucionais
como o regime consagrado no CPA, e cujas justificações parecem residir mais em
considerações de política legislativa do que em argumentos jurídicos[10].
O professor aponta várias críticas pelas quais afirma que não é de adotar uma
interpretação restritiva: primeiro, considerar que, a partir de agora, o
recurso hierárquico passou a ser sempre “desnecessário”, mas que ele pode
continuar a ser exigido como condição prévia de impugnação, mesmo quando já não
pode mais continuar a ser comiserado como condição de impugnação, ou como
pressuposto processual, é uma contradição insanável[11];
em segundo, diz-se que o CPTA revogou a “regra geral” do recurso hierárquico do
CPA (Código Processo Administrativo) mas não as regras especiais. Admitindo que
isso era assim, seria forçoso concluir que, antes da reforma, tais normas ditas
“especiais” não possuíam qualquer especialidade, já que eram apenas a
confirmação da “regra geral”[12];
em terceiro, do ponto de vista constitucional, se já era difícil antes da
reforma considerar que a exigência do recurso hierárquico era inconstitucional,
parece agora para o professor, uma “missão impossível”, - depois da
concretização legislativa do direito fundamental de acesso à justiça
administrativa mediante a consagração da regra da desnecessidade de impugnação
administrativa prévia ao acesso ao juiz,- pudessem existir exceções a este
regime[13];
em quarto lugar, o CPA concretizando o direito fundamental de acesso ao
Contencioso Administrativo, artigo 268.º4 CRP (Constituição da República
Portuguesa), estabelece um principio de “promoção do acesso à justiça, artigo 8.º
do CPA, segundo o qual o “mérito” deve prevalecer sobre as “formalidades” o que
implica, a regra segundo a qual devem ser evitadas diligencias inúteis. Para o
professor não é possível imaginar nada mais inútil e despropositado do que
continuar a exigir uma qualquer garantia administrativa prévia, quando tal
exigência deixou de ser um pressuposto processual de impugnação de atos
administrativos[14].
Do
outro lado, temos então os autores que defendem uma interpretação mais ampla ou
maximalista do regime, entendendo que o legislador da reforma afastou, de modo
expresso e inequívoco, a existência de recurso hierárquico necessário,
independentemente da sua fonte, afetando normas gerais e especiais. É a posição
dos professores Vasco Pereira da Silva e Paulo Otero[15].
Já antes da reforma, o professor Vasco Pereira da Silva defendia a
inconstitucionalidade da regra do recurso hierárquico necessário, com base nos
seguintes argumentos: princípio constitucional da plenitude da tutela dos
direitos dos particulares, artigo 268.º4 CRP, pois a inadmissibilidade de
recurso contencioso, quando não tenha existido previamente o recurso
hierárquico necessário, equivale, para todos os efeitos, a uma verdadeira
negação do direito fundamental de recurso contencioso[16];
do princípio constitucional da separação entre a Administração e a Justiça,
artigos 114.º, 205.º e seguintes, 266.º e seguintes da CRP, por fazer precludir
o direito de acesso ao tribunal em resultado da não utilização de uma garantia
administrativa (que não poderá ser outra coisa senão facultativa)[17];
o princípio constitucional da desconcentração administrativa, artigo 267.º2
CRP, que implica a imediata recorribilidade dos atos dos subalternos sempre que
lesivos, sem prejuízo da logica do modelo hierárquico de organização
administrativa, pois o superior continua a dispor de competência revogatória,
artigo 142.º CPA[18];
princípio da efetividade da tutela, artigo 268.º4 CRP, em razão do efeito
preclusivo da impugnabilidade da decisão administrativa, no caso de não ter
havido interposição previa de recurso hierárquico, no prazo de 30 dias, artigo
168.º2 CPA, reduzindo assim drasticamente o prazo de impugnação de atos
administrativos, o qual por ser manifestamente curto, poderia equivaler à
inutilização da possibilidade de exercício do direito e suscetível de ser
equiparada à lesão do próprio conteúdo essencial do direito[19].
Tal posição não era sufragada pela jurisprudência nem por importantes setores
da doutrina[20]. O afastamento inequívoco e definitivo da
necessidade de recurso hierárquico como pressuposto de impugnação contenciosa resulta
então: da “consagração da impugnabilidade contenciosa de qualquer ato
administrativo que seja suscetível de lesar direitos ou interesses legalmente
protegidos dos particulares ou que seja dotado de eficácia externa”(artigo
51.º1, CPTA)[21];
da “atribuição de efeito suspensivo do prazo de impugnação contenciosa do ato
administrativo à utilização de garantias administrativas” (artigo 59.º4, CPTA –
passando o recurso hierárquico necessário, ainda que desnecessário, a ser útil) o que significa uma maior eficácia à utilização de
garantias administrativas, dado que o particular, que decida optar previamente
por essa via, sabe agora que o prazo para a impugnação contenciosa só voltará a
correr depois da decisão do seu pedido de reapreciação do ato administrativo.
Da perspetiva do particular, passa a valer a ena solicitar previamente uma
“segunda opinião” por parte da Administração[22]; do “estabelecimento
da regra segundo a qual, mesmo nos casos em que o particular utilizou
previamente uma garantia administrativa e beneficiou da consequente suspensão
do prazo de impugnação contenciosa, isso não impede a possibilidade de imediata
impugnação do ato administrativo” (artigo 59.º5, CPTA)[23]. O que
significa o afastamento inequívoco da “necessidade” de recurso hierárquico, bem
como de qualquer outra garantia administrativa, já que doravante é sempre
possível ao particular aceder de imediato à via contenciosa, independentemente
de ter feito uso ou não dessa via graciosa. Esta posição é rejeitada/criticada pelo professor
Mário Aroso de Almeida que, apoiando-se nas posições do Tribunal Constitucional
e do Supremo Tribunal Administrativo, entende não caber “à Constituição
estabelecer os pressupostos de que possa depender a impugnação dos atos
administrativos, em termos de se poder afirmar que eles só são legítimos se
forem objeto de expressa previsão constitucional” e ainda que as “decisões
administrativas continuam (…) a estar sujeitas a impugnação administrativa
necessária nos casos e que isso esteja expressamente previsto na lei, em resultado
de uma opção consciente e deliberada do legislador, quando este a considere
justificada”[24].
Então será que
faz sentido esta distinção entre recurso hierárquico necessário e facultativo?
Nos termos do artigo 185.º1 CPA, o recurso hierárquico é necessário ou
facultativo consoante o ato a impugnar seja ou não insuscetível de recurso
contencioso, tal como acontecia quando um ato não era definitivamente vertical,
ou seja, quando o ato fosse praticado por um subalterno em que, primeiramente,
o impugnante teria que recorrer hierarquicamente dele (recurso hierárquico
necessário) para que depois, eventualmente, este ato possa ser suscetível de
recurso contencioso. Para autores como o Professor Vasco Pereira da Silva, que
defendem que o recurso hierárquico necessário deixou de ter lugar no novo
contencioso administrativo, já não faz sentido fazer tal distinção, pois esta
existia apenas e unicamente para saber se o ato administrativo era ou não
suscetível de recurso contencioso. Para outros autores, como o Professor Mário
Aroso de Almeida, que defende, que o recurso hierárquico necessário poderá ser
admitido quando resulte de uma opção consciente e deliberada do legislador,
obviamente que esta distinção faz todo o sentido e continua a ser atual. Assim, quando nada seja dito, deve entender-se que o ato pode ser
imediatamente impugnável perante os tribunais administrativos, mas, se existir
algum regime expresso na lei que preveja o recurso hierárquico necessário
então, este deve ser observado. Considera-se assim em vigor as normas avulsas
que impõem tal regime.
Em conclusão, partilho
da posição do professor Vasco Pereira da Silva. É tarefa da Constituição da
República Portuguesa estabelecer direitos fundamentais (como o direito de
acesso à justiça) e princípios do Estado democrático de Direito como o
princípio da tutela plena e efetiva dos direitos dos particulares, sendo que
todas as disposições do legislador ordinário que os possam limitar ou
contrariar são inconstitucionais. Isto porque considero que continuar a exigir
a impugnação administrativa prévia ainda que em determinadas leis avulsas,
constitui uma grave violação do princípio da tutela plena e efetiva dos
direitos dos particulares, nomeadamente do direito de acesso à justiça,
dando-se assim ao legislador ordinário uma margem de discricionariedade capaz
de violar tal direito criando-se assim uma desigualdade entre pessoas que
deviam ter o mesmo direito de acesso à justiça constitucionalmente consagrado.
Este é o argumento principal que me leva a concordar com o professor. Persistir
na regra do recurso hierárquico necessário “desnecessário” é uma ideia difícil
de aceitar pois, continuar a exigir uma garantia administrativa prévia, quando
tal exigência já deixou de ser pressuposto!
Bibliografia:
· SOUSA, Marcelo Rebelo de, Direito
Administrativo Geral, Tomo III, 2007;
· SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso
Administrativo no divã da psicanálise, 2005, Almedina;
· ALMEIDA, Mário Aroso, O novo regime do
Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2005;
[1] SOUSA,
Marcelo Rebelo de, Direito Administrativo Geral, Tomo III, 2007, pag.211;
[2] SILVA,
Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2005,
pag.310;
[3] SILVA,
Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2005,
pag.322;
[4] SILVA,
Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise, 2005,
pag.322.
[5]
ALMEIDA, Mário Aroso, O novo regime do processo nos Tribunais Administrativos,
4ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, pag.147;
[6]
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise,
2005, pag.318;
[7]
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise,
2005, pag.319;
[8]
ALMEIDA, Mário Aroso, O novo regime do processo nos Tribunais Administrativos,
4ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, pag.147;
[9]
ALMEIDA, Mário Aroso, O novo regime do processo nos Tribunais Administrativos,
4ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, pag.147;
[10]
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise,
2005, pag.326;
[11]
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise,
2005, pag.327.
[12]
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise,
2005, pag.328;
[13]
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise,
2005, pag.329;
[14]
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise,
2005, pag.331;
[15]OTERO,
Paulo, Impugnações Administrativas, in “caderno da justiça administrativa”, n.º
28, Julho/Agosto, 2001, paginas 50 e seguintes;
[16]
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise,
2005, pag.319;
[17]
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise,
2005, pag.319.
[18]
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise,
2005, pag.319-320;
[19]
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise,
2005, pag.320;
[20]Acórdão
n.º499/96, do Tribunal Constitucional, pronunciando-se no sentido da não
inconstitucionalidade do recurso hierárquico necessário, e respetiva anotação
feita por Vieira de Andrade “defesa do recurso hierárquico necessário” in
“cadernos de justiça administrativa”, n.º0, Novembro/Dezembro de 1996, paginas
13 e seguintes.
[21]
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise,
2005, pag.322;
[22]
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise,
2005, pag.323;
[23]
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso administrativo no divã da psicanálise,
2005, pag.324.
[24]
ALMEIDA, Mário Aroso, O novo regime do processo nos Tribunais Administrativos,
4ª edição, Almedina, Coimbra, 2005, pag.147.
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