O mecanismo de reenvio prejudicial
Neste post, iremos abordar a temática do mecanismo de reenvio prejudicial, tomando consciência do seu regime, efeitos e da sua delimitação face a algumas figuras afins, como, por exemplo, a suspensão da instância.
Delimitação em relação ao reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia
Antes de mais, considero fulcral estabelecer uma noção de questão prejudicial, assim como, expor, de forma breve, o seu enquadramento e regime jurídico.
As questões prejudiciais encontram – se previstas no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e consubstanciam uma modalidade de controlo sucessivo dos acordos internacionais, sendo que o mesmo é exercido pelo TJUE após a conclusão e entrada em vigor desses acordos.
De facto, questão prejudicial será aquela que um órgão jurisdicional de qualquer Estado Membro considera necessária para a resolução de um litígio pendente para si e que seja referente à interpretação e validade dos Tratados. Perante esta questão, o órgão jurisdicional nacional requer ao TJUE, intérprete máximo do Direito da União Europeia, que se pronuncie, de forma a ficar esclarecido sobre o correto entendimento ou validade das disposições europeias que condicionam a solução do litígio concreto a que é avocado. Logo, o reenvio prejudicial é, no fundo, um mecanismo processual que permite o diálogo entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o TJUE, tendo como finalidade máxima, atingir uma interpretação e aplicação uniformes do Direito da União Europeia, em todo o espaço europeu. De notar, que estas últimas são a única forma de garantir a igualdade jurídica de todos os cidadãos europeus e tutelar os direitos que lhes são conferidos pelo direito mencionado.
Como sabemos, as questões prejudicais podem ser facultativas[1]ou obrigatórias[2], sendo os seus efeitos distintos, quanto à colocação da questão prejudicial e efeitos de decisão prejudicial a proferir no processo nacional em que foi colocada, assim como, em relação à matéria versada, ou seja, interpretação ou validade.
Quanto aos primeiros. Proferindo o juiz nacional o despacho de reenvio, a instância do processo em julgamento será suspensa, até se obter a pronúncia desejada, no que se refere à futura prolação da decisão do mérito, não obstante de prosseguir os seus trâmites normais, em tudo o que não interfira com ela, como, por exemplo, a decisão de recursos de decisões interlocutórias e instauração e decisão de providencias cautelares. No que diz respeito aos segundos, podemos atestar que assim que seja decidida a questão prejudicial, por meio de acórdão proferido pelo TJUE, o tribunal que suscitou a questão e os restantes tribunais que julgam a causa em sede de recurso estão vinculados às conclusões do acórdão prejudicial, quer aos efeitos materiais, quer aos temporais[3].
Relativamente, aos efeitos decorrentes do conteúdo e matéria, podemos estabelecer o seguinte pensamento: tratando – se de acórdão interpretativo, a interpretação incorpora – se na norma que interpreta e vincula o juiz nacional à sua aplicação, com o sentido e o alcance definidos pelo acórdão; se estivermos perante questões referentes à validade, mesmo que o ato seja declarado inválido, ele permanece na ordem jurídica da União até à sua alteração ou revogação, operando uma verdadeira situação de coma[4]. Esta declaração de invalidade vincula os tribunais nacionais, bem como, os órgãos da UE e Estados Membros a desaplicar o ato em causa, gerando – se, nesse sentido, um dever de eliminação ou alteração do ato na ordem jurídica da União Europeia.[5]
Declarando – se o ato válido, este produz efeitos obrigatórios e vincula o juiz, sendo que este último não pode recusar a sua aplicação ao caso concreto.
Todavia e tendo em conta o supracitado, as questões prejudiciais no Código de Processo dos Tribunais Administrativos, consagradas no artigo 15.º de mesmo código, não tem que ver com a necessidade de entendimento adequado ou apuramento de validade de disposições administrativas e contenciosas, mas sim com a necessidade de decisão da competência de um tribunal pertencente a outra jurisdição, como as de natureza jurídico - privada.
As questões prejudiciais no CPTA
Como referido, esta matéria encontra – se consagrada no artigo 15.º CPTA. Para efeito deste Código, constitui questão prejudicial aquela que é fulcral para a apreciação do fundo da causa e suscetível de modificar a situação jurídica que tem de ser dirimida na decisão a proferir, embora a mesma seja da competência de outro tribunal[6], como, por exemplo, do tribunal judicial ou do Tribunal de Contas, entre outros. Diga – se, a título de exemplo de questão prejudicial, a situação em que insta saber acerca da titularidade do direito de propriedade sobre um bem, em relação ao qual existe um litígio, tema versado no Acórdão TAF Braga, de 26 de Junho de 2917, processo n.º 00430/12, assim como, a dúvida sobre o mesmo direito em sede de providência cautelar relativa a um procedimento pré – contratual[7].
Para se tratar de uma verdadeira questão prejudicial, é crucial que estejam verificados os seguintes requisitos: questão prévia e prejudicial, ou seja, representar um antecedente lógico – jurídico da decisão da questão principal, de tal modo, que se imponha e que se resolva antes da decisão final da questão principal; autonomia processual e jurisdicional, o que implica ser autónoma, no sentido de, por si só, quer pelo seu objeto, quer pela sua natureza, poder legitimar um processo independente no seu tribunal de origem, que integra uma ordem de jurisdição distinta da Administração e, finalmente, a necessidade, traduzindo – se na ideia de que a sua resolução se apresenta manifestamente necessária e plausível, não sendo meramente dilatória. De frisar que estes requisitos são cumulativos.
Perante esta questão, o juiz pode tomar uma de duas decisões: sobrestar na decisão até que o tribunal competente se pronuncie, nos termos do artigo 15.º n. º1 CPTA, ou decidir a questão prejudicial com base nos elementos disponíveis no processo administrativo, designadamente, os elementos de prova, sendo que os efeitos dessa questão ficam restritos ao âmbito do processo do contencioso administrativo, como previsto no artigo 15.º n. º3. De salientar que a opção por uma destas alternativas depende de um juízo formulado pelo juiz, atendendo às especificidades do caso, onde se deve incluir a simplicidade ou complexidade da questão prejudicial, bem como, o grau de dificuldade de recolha dos elementos necessários a uma decisão conscienciosa.[8]
Tendo tudo isto em conta, podemos afirmar que ao artigo 15.º n. º1 CPTA subjaz o princípio da devolução facultativa. Em termos dogmáticos, este princípio basilar do sistema do contencioso administrativo, consubstancia – se em dois princípios estruturantes, que são a devolução facultativa e a suficiência discricionária. Assim sendo, podemos concluir que a opção pela primeira alternativa traduz o princípio da devolução facultativa e a opção pela segunda o princípio da suficiência discricionária[9]. Note – se que estes princípios se apresentam numa posição intermédia em relação às teses de devolução e conhecimento obrigatórios, que eram acolhidas até 1984[10].
Considero fulcral referir que este princípio não se encontra isolado, mas, constitui, ao invés, um caractere de um microssistema de princípios relativos à prossecução processual que partilha um lugar, a par de outros microssistemas, num macrossistema designado de princípios gerais do processo administrativo[11].
Prazo
Este é um aspeto regulado pelo artigo 15.º n. º2 CPTA.
No caso de o juiz ter optado por suspender a decisão administrativa, com devolução das partes para a jurisdição competente, e a ação de competência do tribunal pertencente a outra jurisdição não for proposta no prazo de dois meses, por inércia dos interessados, a suspensão do processo administrativo torna – se ineficaz. Perante este cenário, o julgador deverá julgar a questão prejudicial e decidir, tendo como apoio os elementos disponíveis e com a limitação dos efeitos dessa decisão ao âmbito do processo administrativo, ou seja, intra processuais,[12]à luz do artigo 15.º n.º 3. Trata – se, no fundo, de uma sanção jurídica à inércia da parte interessada, tendo que suportar uma decisão emitida por um tribunal que se encontra pior posicionado devido ao facto de se apresentar como menos habilitado para tal decisão.
Estes efeitos, verificam – se, igualmente, nas situações em que ao processo relativo a questão prejudicial não for dado andamento, durante o mesmo prazo, por negligência das partes.
Delimitação em relação às questões prejudiciais no Código de Processo Civil
O Código de Processo Civil também prevê o mecanismo de reenvio prejudicial, no artigo 92.º, caso o conhecimento do objeto da ação dependa da decisão de uma questão que seja da competência do tribunal criminal ou do tribunal administrativo. Em virtude deste facto, o juiz tem o poder de sobrestar na decisão até que o tribunal competente se pronuncie, o que nos leva a constatar que a solução do artigo 92.º do CPC é paralela à do CPTA, embora em sede deste último o juiz tenha duas opções, tal como referido supra.
A grande diferença entre estes dois regimes tem que ver, essencialmente, com questões de prazo, já que em processo civil a cessação da suspensão ocorre, se a ação penal ou administrativa não for exercida dentro de um mês, contrapondo – se, portanto, aos dois meses de processo administrativo. Contudo, apesar da divergência em termos de prazo, os efeitos da sua decorrência são os mesmos, visto que o juiz irá decidir a questão prejudicial, mas a sua decisão não irá produzir efeitos fora do processo em que for proferida, tendo, assim, efeitos intra processuais[13], tal como previsto no artigo 92.º n. º2 CPC.
Distinção entre questões prejudiciais administrativas e suspensão da instância
Além desta questão prejudicial administrativa se diferenciar da homónima no âmbito do Direito da União Europeia, distingue – se, igualmente, da suspensão da instância, consagrada no artigo 272.º do Código de Processo Civil[14]. Esta verifica – se quando o juiz considere apropriado suspender a instância, devido ao facto de a decisão se encontrar dependente do julgamento de outra ação já proposta no mesmo ou noutro tribunal. Esta suspensão é, desta forma, justificada pela circunstância de o julgamento de um processo pendente poder interferir na decisão de mérito a proferir no outro.
Conclusão
Tendo em conta o exposto, o comando jurídico do artigo 15.º do CPTA corresponde a um mecanismo de extensão de competências, para os tribunais administrativos, de matérias distintas das previstas para a sua competência, sendo que o poder do juiz, de decidir ou devolver a questão prejudicial, não se condensa numa mera faculdade ou opção, livre e discricionária, tratando – se, ao invés, de um poder funcional, um verdadeiro poder - dever que se conforma a partir da realidade fáctica e processual em questão. Tudo isto envolve a mobilização de um conjunto de outros valores e princípios de menor densidade, mas, indubitavelmente, importantes, como, os princípios da economia e celeridade processual, princípio da confiança e segurança jurídica e, por último, o princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.
Apesar deste mecanismo ser dotado apenas de um artigo no CPTA, apresenta algumas especificidades, às quais importa atentar, e, contrariamente ao que se possa pensar, ainda é revestido de alguma relevância prática em alguns acórdãos. Exemplo disso, é o Acórdão do TAF de Braga, de 26 de Maio de 2017, processo nº 00439/12.5BEBRG.
Bibliografia
· ANDRADE, Viera, A Justiça Administrativa, Lições, 15ª edição, Almedina, 2016.
· ALMEIDA E CADILHA, Mário Aroso e Carlos Alberto, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, reimpressão da 4ª edição, Almedina, 2018.
· DUARTE, Maria Luísa, Direito Contencioso da União Europeia, AAFDL Editora, 2017.
· ESTEVES OLIVEIRA, Mário e Rodrigo, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, volume I, reimpressão da edição de 2004, Almedina, 2006.
· GUERRA MARTINS, Ana Maria, Os desafios contemporâneos à ação externa da União Europeia, Lições de Direito Internacional Público II, Almedina, 2018.
· PINTO, Rui, Código de Processo Civil Anotado,volume I, Almedina, 2016.
[1]As questões serão facultativas, se num processo pendente num órgão jurisdicional nacional se admitir recurso ordinário da decisão, sendo, nestas situações, o juiz nacional livre de pedir ao TJUE que se pronuncie sobre ela, exceto se o juiz nacional se inclinar para a invalidade de um ato europeu, pois a competência para declarar essa invalidade é exclusiva do TJUE, de acordo com o Acórdão Foto – Frost, de 22 de Outubro de 1987, processo 314/85, segundo o qual “sempre que a validade de um ato ou disposição de Direito derivado da UE suscite dúvidas, qualquer tribunal, ainda que não esteja a decidir em última instância, tem a obrigação de submeter essa questão da eventual invalidade ao TJUE”. Com efeito, o Acórdão Foto – Frost torna as questões prejudicais facultativas em obrigatórias.
[2]As questões serão obrigatórias, se num processo pendente num órgão jurisdicional nacional não se admitir recurso ordinário da decisão, de acordo com o direito interno, e a questão for pertinente e necessária para a solução do caso concreto. Isto acontece, principalmente, nos tribunais de última instância, dizendo – se, a título de exemplo, o Supremo Tribunal de Justiça, sendo que nestas situações, o órgão jurisdicional nacional é obrigado a submeter a questão prejudicial ao TJUE, sob pena de violação do Tratado e, consequentemente, objeto de ação por incumprimento, nos termos do artigo 258.º TFUE, gerando responsabilidade do Estado – Membro que é aferida à luz do principio da responsabilidade dos Estados Membros por incumprimento do DUE.
[3]Acórdão Milch – Fett, und Eierkontor, de 24 de Junho de 1969, processo C – 29/68.
[4]MARIA LUÍSA DUARTE, Direito Contencioso da União Europeia,AAFDL Editora, 2017, página 146 e 147.
[5]Acórdão Quellmehi, de 6 de Outubro de 1982, processo C – 261/78.
[6] Segundo Mário Aroso de Almeida, para esta definição de questão prejudicial podemos referir o Acórdão do STA, de 3 de Julho de 2003, processo nº 648/2003 (cf. Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos,reimpressão da 4ª edição, Almedina, 2018, página 156).
[7]Acórdão TCA Sul, de 13 de Outubro de 2005, processo nº1041/05.
[8]MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, reimpressão da 4ª edição, Almedina, 2018, página 156.
[9]VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, Lições, 15ª edição, Almedina, 2016, página 446.
[10]Este regime foi instituído, em 1984, pelo Estatuto do Tribunal Administrativo e Fiscal (ETAF), no seu artigo 4.º n. º2.
Para tal, também contribui o conteúdo do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 18 de Fevereiro de 1998, processo 125899, que afirma que o legislador consagrou “inovatoriamente o princípio da suficiência da jurisdição administrativa e, contrariamente ao que acontecia no direito anterior, o juiz tem hoje a faculdade, não o dever, de sobrestar na decisão até que o tribunal competente se pronuncie”.
[11]VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, Lições, 15ª edição, Almedina, 2016, página 441.
[12]ESTEVES DE OLIVEIRA, Códigode Processo nos Tribunais Administrativos,volume I, reimpressão da edição de 2004, Almedina, 2006, página 191.
[13]ESTEVES DE OLIVEIRA, Códigode Processo nos Tribunais Administrativos,volume I, reimpressão da edição de 2004, Almedina, 2006, página 191.
[14]MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, reimpressão da 4ª edição, Almedina, 2018, página 157.
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