domingo, 2 de dezembro de 2018

A importância da “Spruchreif” no nosso Contencioso Administrativo e Tributário


Introdução 
         Dividindo “Spruchreif” - são possíveis de encontrar duas figuras jurídicas distintas dentro desta expressão. Assim teremos “Spruch” e “Reife”, que por sua vez significam exactamente Julgamento e Maturidade, respectivamente[1]

         Preenchendo “Spruchreif” - conceito utilizado pela doutrina, legislação  e sistema judicial alemão, destinado a dar expressão à matéria abordada na acção administrativa de condenação à prática de acto devido, referindo-se a um momento especifico - aquele em que essa mesma matéria se encontra Madura o suficiente para ir a Julgamento, ou para ser proferida pronúncia.

         Sistematizando “Spruchreif” - encontra a sua previsão normativa especifica no artigo 113.º, número 5, primeira parte,[2] do Código de Processo dos Tribunais Administrativos alemão, ou Verwaltungsgerichtsordnung, mais comumente conhecido por VwGO,

         Concretizando “Spruchreif” - pese embora encontre a sua origem no Contencioso Administrativo alemão (Verwaltungsprozessrecht), nem por isso deixa de ter a sua influência no ordenamento português, nomeadamente no artigo 71.º do CPTA.

         Concluindo “Spruchreif” - há que deixar claro que não se trata de uma figura exclusiva ao Contencioso Administrativo alemão, sendo utilizada neste ordenamento jurídico pela doutrina e jurisprudência quanto à matéria de Processo Civil (Zivilssprozessrecht). No entanto aquilo que aqui se propõe, e importa, abordar prende-se com a possibilidade de fazer um paralelo entre ordenamentos jurídicos por forma a verificar a possibilidade ou não, de aplicação do conceito germânico ao Contencioso Administrativo português.

Desenvolvimento

         Antes demais cabe efectuar o enquadramento legal da matéria atinente à - Condenação à Prática de Acto Devido. Inserida no Capítulo II, Secção II do CPTA[3], isto é, entre os artigos 66.º e 71.º, do diploma referido.

         Por forma a possibilitar a analise do tema como um todo, e também como parte  de um sistema uno, é de todo o interesse que, antes demais, se faça notar que existem dois grandes pressupostos à condenação à prática de acto previstos no artigo 67.º do CPTA, sendo eles:

-     Quando tenha sido apresentado requerimento (número 1 do preceito supra referido);

-     Quando não tenha sido apresentado requerimento (número 4 do preceito supra referido).[4]

         Os pressupostos que se acabam de mencionar encontram-se directamente ligados ao objecto da acção administrativa em causa, ou no mesmo sentido se pode concluir pela relação intima destes com artigo 66.º, CPTA. É pois, precisamente sobre este objecto - “sache” - que o tribunal irá proferir uma “spruch” no momento em que aquela se encontre “reife”.

         Uma vez feita a identificação sistemática do que se propõe trabalhar, cabe então agora proceder a uma análise mais detalhada e desenvolvida do  sistema presente no nosso ordenamento por forma a concretizar a aplicabilidade, ou não, do conceito da “Spruchreif” no âmbito da acção administrativa de condenação à prática de actos no Contencioso Administrativo e Tributário português. Mais concretamente interessa-nos abordar a temática dos “Poderes de pronúncia do tribunal” nos termos do disposto no artigo 71.º, CPTA, para que dessa forma consigamos alcançar a verdadeira importância da “importação” conceptual.

         É mandatório que se comece por referir a existência de uma necessidade de cumprimento do Princípio da Limitação Funcional, disposto no artigo 3.º número 1 do CPTA.

Segundo este principio basilar do Contencioso Administrativo moderno, há que assegurar que  o poder judicial não se imiscui no exercício da função administrativa.[5]

         O poder de condenar a administração a praticar actos devidos (seja por esta os ter ilegalmente omitido ou recusado - artigo 66.º, número 1, in fine, CPTA) parece encaixar dentro das dimensões do conceito de Plena Jurisdição dos Tribunais Administrativos.

No entanto, seria errado pensar que, pelo simples facto de se encontrar inserido no âmbito e poderes destes tribunais, se encontra livre de perigos. Bem pelo contrario, exige-se o maior dos cuidados aquando do preenchimento e abordagem desta matéria.

         É precisamente devido a esta exigência, e com vista a garantir que é respeitada a autonomia do poder administrativo, que se verifica a importância da previsão normativa do artigo 71.º do CPTA e portanto do conceito de “Spruchreif”, trazido pelo direito alemão.

         É assim, de extrema importância proceder à análise exaustiva do artigo 71º do CPTA por forma a conseguir, através da mesma, chegar a uma conclusão válida sobre a “Spruchreif” e à possibilidade de aplicação desta no nosso Contencioso Administrativo.

         Ora, dispõe o número 1 do artigo 71.º, CPTA, que “…o tribunal não se limita a devolver a questão ao órgão administrativo competente (…) mas pronuncia-se sobre a pretensão material do interessado…” mesmo que não exista uma prévia instrução por parte da Administração. Neste ponto, a questão mais problemática será a de saber se com o resultado desta pronúncia, ou seja no caso de imposição à “…prática do acto devido.” se estaria ou não a ir contra os limites funcionais do tribunal.

         Segundo a opinião de António Cadilha[6], o responsável pela pronúncia sobre a causa estará legitimado a criar as condições necessárias para que seja proferida sentença, recorrendo por isso aos meios processuais ao seu dispor por forma a determinar se de facto a Administração está ou não obrigada a praticar certo acto. No entanto, escreve ainda António Cadilha que a possibilidade de devolução não está fechada, podendo e devendo acontecer quando se corra o risco de se transbordar do âmbito judicial e dessa forma se imiscuir nas competências da Administração.

         O número 2 do artigo 71º do CPTA estabelece uma distinção clara entre situações onde esteja em causa o exercício de uma poder vinculado ou de um poder discricionário por parte da administração. Desta forma se estiver em causa um acto de poder vinculado, entende-se que o juiz, aplicando a lei, pode condenar a Administração a praticar o acto devido havendo portanto uma sentença de condenação, em sentido estrito. Por outro lado, se a questão for dada a conhecer no âmbito de poderes discricionários da Administração, ao tribunal compete somente verificar a ilegalidade do acto de indeferimento ou omissão, sendo que depois de o fazer, intima a Administração a solucionar por si a situação por esta criada.

         Ainda na senda do número 2 do artigo 71.º, CPTA, e como já vimos, este refere-se à pronúncia sobre um acto que “… envolva a formulação de valorizações próprias do exercício da função administrativa…” caindo assim dentro do exercício de poderes administrativos e como tal a pronúncia deverá apenas explicitar as vinculações a observar pela a Administração.

         Contudo, quando no preceito em causa se lê “… a apreciação do caso concreto não permita identificar apenas uma solução como legalmente possível…” deve também conseguir-se alcançar o seguinte sentido - no caso de o Tribunal Administrativo verificar que apenas seria possível uma e apenas uma solução legal, ou seja numa situação de “discricionariedade zero” por parte da Administração, esse mesmo tribunal se pode pronunciar nos termos de uma verdadeira sentença condenatória.[7]

Como é costume dizer-se, não há excepção sem regra. Esta expressão preenche-se perfeitamente no âmbito deste artigo 71.º número 2 do CPTA, na medida em que a regra é a de emissão de pronúncia num sentido explicativo/indicativo à Administração, sendo a excepção aquela situação em concreto em que o tribunal verifique apenas uma solução legal possível.

         Por fim, chegamos ao número final do artigo em apreciação e ainda que também neste não se encontre qualquer estipulação expressa, por oposição à formulação alemã, estou em crer que o preceito normativo em Portugal é revestido da mesma ratio que se verifica no artigo do VwGO.

         Impõe o número 3 do artigo 71.º, CPTA, que o tribunal, aquando chamado a pronunciar-se sobre a causa deverá esgotar todas as hipóteses e mesmo quando “… tenha sido pedida a condenação à prática de um acto com um conteúdo determinado, mas se verifique que (…) não é possível determinar o seu conteúdo, o tribunal não absolve do pedido, mas condena a entidade demanda à emissão do acto em questão…” nos termos do estipulado pelo número 2 do mesmo preceito.

Cabem então neste preceito situações em que tendo sido identificado  e determinado o conteúdo, mas se na realidade se verifica que não é de facto possível essa mesma determinação, não cabe absolvição do pedido, mas remetendo a própria letra da lei para uma solução idêntica ao que ficou dito a propósito do número 2.  

         Tudo o que se acaba de escrever, representa um cenário da maior relevância para o que aqui se pretende estudar, pois uma vez admitindo que a definição de pronúncia do tribunal corresponde à expressão alemã - “Spruch” - ou seja, julgamento/veredicto/sentença, faz todo o sentido defender que esta apenas poderá vir a alcançar o seu efeito máximo aquando da sua “Reife”, ou seja aquando da sua maturidade. 

         Mais uma vez, existe a necessidade de estabelecer a correspondência ente o direito português - artigo 71.º, CPTA - e o direito alemão - artigo 113.º , número 5, primeira parte, VwGO. É pois, regra no ordenamento jurídico alemão que o tribunal apenas possa condenar a administração à prática de certo e determinado acto quando estiverem reunidas as condições necessárias à emissão de uma sentença sobre a pretensão que lhe deu origem.

         Desta forma pode ler-se no artigo referido do VwGO, que o tribunal se pronunciará sobre a causa “…wenn die sache spruchreif ist.”[8], ou em português, quando o assunto estiver maduro ou alcançar a maturidade. Assim, a lei, doutrina e jurisprudência alemãs, defendem que o órgão responsável pela pronúncia, apenas a deverá levar a cabo ,numa acção de condenação da Administração à prática de acto, quando não se corra o risco de se intrometer na esfera de acção administrativa.

Conclusão

         Indo ao encontro do que se deixa escrito supra, deverá ser sem dúvida alguma aplicado e entendido, a propósito dos poderes de pronúncia do tribunal a propósito da condenação à pratica de acto, ilegalmente omitido ou recusado, o conceito de “Spruchreif” aqui abordado, admitindo que este se encontra presente, ainda que indirectamente, no ordenamento português.

         A análise paralela entre o regime do artigo 71.º do CPTA, e do artigo 113.º número 5, paragrafo 1º do VwGO faz com que consigamos agora compreender de forma clara e melhorada tudo o que se disse tanto de início como ao longo do desenvolvimento do tema da “Spruchreif”.

         Encontrámos um dominante comum, entre todos os números do preceito legal do CPTA - é necessária a realização de todos os esforços possíveis por forma a alcançar uma maturidade do assunto levado à acção. Se tal não acontecer, o tribunal não deverá ter a pretensão de se intrometer no âmbito da Administração, emitindo somente uma sentença de indicação das vinculações que esta estará obrigada.

         É precisamente por tudo isto que estou em crer que a ratio do artigo 71.º do CPTA e o conceito de “Spruchreif” têm uma compatibilidade indiscutível, provando uma vez mais não só uma influência positiva como ainda uma simplicidade e elegância na elaboração e concretização de conceitos por parte do legislador alemão.

         Por forma a finalizar e concretizar de forma mais completa o que aqui se pretendeu discutir, resta referir que a “Spruch” prossegue sempre, o objectivo máximo, de resolução da questão que lhe deu origem. Assim, e depois de verificada a maturidade do assunto levado à acção e no momento da pronúncia quando não restem dúvidas, rege o artigo 95.º número 4 do CPTA, que nestas ocasiões o tribunal tem ao seu dispor a fixação oficiosa de um prazo, que a administração deverá cumprir, sob pena de se aplicar o disposto no artigo 169.º também do CPTA.

Bibliografia Consultada

-   PROENÇA, André Rosa Lã Pais –“ A 2 faces da condenação à prática de acto devido- pressupostos do pedido e âmbito dos poderes de pronúncia do juiz” Relatório de Mestrado realizado no âmbito do Seminário de contencioso administrativo, Faculdade de Direito Universidade de Lisboa, 2004/2005;

-   CADILHA, António –“ Os poderes de pronúncia jurisdicionais na acção de condenação à prática de acto devido e os limites funcionais da justiça administrativa” in  MIRANDA, Jorge (Coord.)-“ Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Sérvulo Correia, Vol II”, Faculdade de Direito Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, Setembro, 2010;

-   Almeida, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 2017, 3ª Edição, Almedina;

-   ZPO - Zivilprozessordnung, 58. Auflage 2017, Beck-Text im dtv;

-   Verwaltungsgerichtsordnung, VwGO, https://www.gesetze-im-internet.de/vwgo/;

-   Köbler, Gerard unter Mitarbeit von, Holger Siever, Ludmila de Albuquerque, Anne Caroline G. M. de M. Prudêncio, Rechtsportugiesisch, Deutsche-Portugiesisch und portugiesisch-deutsches, Rechtswörtbuch für jedermann, Verlag Franz Vahlen München.



Pedro Pimenta Lopes

4º ano, Subturma 10

Nº 20977



[1] Köbler, Gerhard, in “Rechtsportugiesisch, Deutsche-portugiesisches und portugiesisch-deustches, Rechtswörterbuch für jedermann”, Verlag Franz Vahlen München
[2] § 113 Absatz 5 Satz 2 VwGO
[3] Amado Gomes, Carla e Serrão, Tiago in Coletânea de Legislação Processual Administrativa, 2017, 2ª edição, AAFDL
[4] Almeida, Mário Aroso de, in “Manual de Processo Administrativo, 2017, 3ª Edição, Almedina
[5] “ No respeito pelo principio da separação e interdependência dos poderes, os tribunais administrativos julgam do cumprimento pela administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam e não da conveniência ou oportunidade da sua actuação”- refere António Cadilha que no campo da função administrativa existe uma reserva que os tribunais não devem invadir- CADILHA, António, in “Os Poderes de Pronúncia Jurisdicionais na acção de condenação à prática de acto devido e os limites funcionais da justiça administrativa”
[6] CADILHA, António, Ob Cit.
[7] “E aquilo que a jurisprudência alemã tem defendido é que, em certas situações, apesar da discricionariedade de actuação abstractamente reconhecida à administração, a configuração dos interesses em causa no caso concreto pode levar à conclusão de que a esta ultima não restava outra opção” - PROENÇA, André Rosa
[8] ERKLÄRUNG ZUM BEGRIFF SPRUCHREIFE”, in Jura Forum; Verwaltungsgerichtsordnung, VwGO, https://www.gesetze-im-internet.de/vwgo/, § 113 Absatz 5 Satz 1

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