domingo, 9 de dezembro de 2018


Das Impugnações Administrativas e Contenciosas Necessárias: um regime revogado pelo CPTA?

Análise Jurisprudencial

 
Este artigo procura fazer uma análise da jurisprudência no sentido de perceber se, como defendem alguns Professores, o instituto das impugnações administrativas deixou de as exigir como necessárias e, como diria Vasco Pereira da Silva, passaram a ser meramente “úteis”. Assim, gostaria de propor um “antes e depois”: começo por analisar um acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul que julga ao abrigo do anterior CPTA, de forma a melhor percebermos os efeitos no caso concreto; passo depois uma análise da doutrina e de um acórdão mais recente, para, juntos, averiguarmos se houve alguma mudança substancial.

Crítica ao Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 16/04/2015, referente ao Processo n.º 11094/14

Introdução e Enquadramento Factual
 O acórdão em apreço data de 16 de abril de 2015, não contendo por isso as alterações mais recentes decorrentes do artigo 15.º do D.L. n.º 214-G/2015, de 2 de outubro[1].
Este acórdão reflete a história de uma tumultuosa relação laboral, que cabe no âmbito administrativo por força dos artigos 1.º e 2.º/1 do Código de Procedimento dos Tribunais Administrativos e dos artigos 4.º/1 a) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Ficais (doravante, e respetivamente, CPTA e ETAF).
A autora (doravante, A.) começa a trabalhar para a ré (daqui para a frente, R.) dia 16 de janeiro de 1987. Cinco anos depois, em 30/01/92, a mesma é suspensa por sanção disciplinar que vem a ser anulada pelo Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão que data de 4 de dezembro de 1997. Depois de requerer que fosse reintegrada a dia 14 de janeiro de 1998, e mais uma vez, nada lhe tendo sido dito, a autora apresenta-se ao serviço no dia 17 de Abril de 1998, e pedem-lhe que fale com o Presidente do Serviço Nacional de Proteção Civil, que por sua vez só a recebe 3 dias depois para a informar de que “não valia a pena atribuir-lhe funções pois sabia da existência de um processo disciplinar que estava a correr contra A. e que, como tal, deveria aguardar o desfecho desse processo, o que a recorrente fez”.
A. recebe, entretanto, um ofício do Ministério da Administração Interna, cerca de cinco meses depois, “onde lhe era comunicado que contra si estava a correr termos um processo disciplinar, cujo conteúdo nunca lhe foi dado, no entanto, a conhecer”.
O razão pela qual a autora recorre novamente ao tribunal tem fundamento aquando da publicação da lista de antiguidades, publicitada pelo Aviso n° 4589/2006 no D. R., nº 73, de 12 de abril e conhecida por A. a 18 de Abril de 2006. Esta lista conta 10 anos, 2 meses e quinze dias de antiguidade para A., desatendendo totalmente à situação da mesma, que esteve ausente cerca de 5 anos, quer por doença (e com baixa nesse sentido), quer pela sanção que sofreu.
Ora, no campo do regime de férias, faltas e licenças dos funcionários e agentes da Administração Pública há o DL 100/89, que estipula com clareza no seu artigo 96/1.º[2] a figura do da reclamação hierárquica necessária nesses casos o que, de resto, se contende com o regime que o CPA e o CPTA possuem neste âmbito (artigos BLÁ). No entanto, o n. º3 do mesmo artigo vem limitar essa faculdade nos casos já considerados[3] em listas anteriores, o que tinha acontecido nas publicitadas através dos correspondentes avisos em março de 2001, março de 2003, abril de 2004 e março de 2005, listas nunca impugnadas pela autora.
No entanto, desta feita, A. fez efetivamente reclamação por via de requerimento no dia 11/05/2006, ao qual nunca chegou a ter reposta. Passados os 30 dias úteis que o artigo 96.º/3 dispõe, o dirigente nada diz, nem tão pouco toma as diligências necessárias a que o DL obriga no mesmo artigo.
Face ao silêncio da Administração (que constitui, como sabemos, uma omissão administrativa), A. nada faz, violando o disposto no artigo 97.º/1[4] do DL já referido, que pede ainda recurso das decisões sobre reclamações. É de ressalvar que estamos perante um ato administrativo praticado já no domínio da vigência do atual CPTA, e já não na altura em que o indeferimento da reclamação valia como aceitação do mesmo.
A autora pede então, cumulativamente, que: 1 – Haja contagem do seu tempo de serviço desde 1992;
2 - O pagamento de vencimentos devidos durante o período em que esteve ausente por efeito da sanção disciplinar aplicada, bem como o seu reposicionamento nos escalões e índices remuneratórios desde 30/01/1992

Posição do Tribunal
O tribunal, não surpreendentemente, não reconheceu o direito da autora a estar em juízo, pelo que emite sentença baseada na intempestividade da pretensão.
Integra, por sua vez, no plano do interesse processual a necessidade em impugnar administrativamente para depois o fazer em sede contenciosa. Há então o que parece ser uma relação dialética entre os dois pelo que, sem a utilização das vias legalmente estabelecidas para tentar obter a resolução do litígio por via extrajudicial, o Tribunal não reconhece o interesse do autor e absolve o réu do pedido.
Ainda que ceda ao admitir que, de facto, a autora tentou “infrutiferamente obter o resultado pretendido pela via extrajudicial legalmente estabelecida”, o Tribunal não pode conceder-lhe o pedido.
Crítica ao Acórdão em Apreço
Este acórdão mostra perfeitamente como, apesar de o legislador tentar abranger o máximo de situações da vida possíveis, a verdade é que há momentos em que a justiça do caso concreto pode ficar esquecida entre formalidades e burocracia.
A ratio deste instituto, agora alegadamente revogado de forma tácita pela lei, é o reconhecimento do interesse pessoal do autor e da dimensão da sua necessidade de tutela judiciária; assim a lei forçava o autor a usar de todos os meios para, pela via extrajudicial legalmente estabelecida, resolver o seu litígio. Se o autor recorrer diretamente à via judicial a sua pretensão deveria, por isso, ser rejeitada, por falta do ónus de impugnação decorrente da lei.
O Professor Vasco Pereira da Silva critica desde sempre a figura dos recursos hierárquicos necessários por violar o princípio da plenitude da tutela dos direitos dos particulares, expresso no artigo 268.º/4 da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP), o princípio da separação entre a Administração e a Justiça (artigos 114.º, 205.º e seguintes, 266.º e seguintes), o princípio da desconcentração Administrativa por via do artigo 267.º, n.º 2 da CRP. É para este Professor um instituto inconstitucional que, não só reduz muitíssimo o prazo das impugnações administrativas (que, segundo o prazo do artigo BLÁ é de 1 ano) para somente de 30 dias à luz do artigo 168.º, n.º 2 do CPA. Ainda que o mesmo não suceda para o prazo da impugnação administrativa (onde o prazo é sempre de 3 meses à luz do artigo 58.º/1 do CPTA), não deixa de ser um problema que a lei há muito devia ter eliminado por completo ou, nas palavras do Professor, “uma das mais persistentes manifestações dos traumas de infância do contencioso Administrativo, enquanto resquício do administrador-juiz”. 
Por minha parte, parece-me desproporcional que se feche por completo a via contenciosa a um particular e, dessa forma, se negue os seus direitos por o que pode ter sido um desconhecimento da sua parte. Ainda que saiba que a ignorância da lei não é arguível (artigo 6.º do Código Civil), a verdade é que os particulares não têm conhecimento de todos os seus direitos e garantias. E isso é um erro de falta de educação e informação que não me compete comentar, mas que a lei deveria certamente tutelar. O que sei é que, se um particular tiver que fazer um recurso hierárquico necessário, expresso em lei especial, deveria haver uma obrigação de informação por parte da Administração no sentido de, de uma forma transparente, o mesmo poder julgar se pretende manter essa porta aberta.
Caso contrário não estaremos nós a premiar a desresponsabilização da Administração que cometeu o erro (ou não) suscetível de recurso/reclamação, e a obrigar a uma fiscalização por parte dos particulares (que, de resto, muito poucos têm efetivo conhecimento), ao mesmo tempo que a justiça lhes fecha portas em nome da não-utilização de uma garantia, que ainda para mais possui natureza administrativa?
É até, eu diria, uma questão de boa-fé administrativa, na medida em que o problema do particular é desvalorizado com base nos atos que o mesmo tomou, ou não, em sede administrativa. E com base nisso, em sede jurisdicional, o seu direito não pode ser reconhecido.

Atualmente: O Regime do CPTA e a Prática Jurisprudencial Atual

Vasco Pereira da Silva crê, com um olhar positivo sobre a matéria, que “(…) forçoso é concluir que o Código de Processo Administrativo consagrou o afastamento da regra do recurso hierárquico necessário, bem como de outras garantias administrativas suscetíveis de serem consideradas como necessárias, estabelecendo, nos termos da Constituição, um regime jurídico que permite o imediato acesso à apreciação contenciosa de atos administrativos”.
O que acontece então a artigos como o 185.º do CPA, que dispõe que “as reclamações e os recursos são necessários ou facultativos, conforme dependa, ou não, da sua prévia utilização a possibilidade de acesso aos meios contenciosos de impugnação ou condenação à prática de ato devido”? E o que acontece a todas as leis avulsas que o consagram?
Uma forma de tentar responder a estas perguntas é avaliar a prática jurisprudencial sobre a matéria. Já vimos um acórdão que se encontrava abrangido pelo antigo CPTA; cabe agora questionar, com a análise de peças mais recentes, se a prática se alterou, acompanhando o pensamento de alguns Professores supra mencionados.
Nesta matéria, e  apesar da mudança legislativa do CPTA que deixa de fazer menção expressa ao instituto, os tribunais parecem continuar a admitir a sua legalidade: Refiro-me, em especial, ao acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte que data de 08-01-2016, e que começa por alegar que, “com o CPTA deixou de ser exigido, em termos gerais e como condicionante da própria sindicabilidade contenciosa, que os atos administrativos tenham sido objeto de prévia impugnação administrativa para que possam ser objeto de impugnação contenciosa, afirmando-se, ao invés, a regra geral da desnecessidade da utilização da via de impugnação administrativa para aceder à via contenciosa”, para logo a seguir, rematar que, tal regra, “contida no artigo 51.º do CPTA, é inaplicável sempre que haja determinação legal expressa, anterior ou posterior à sua entrada em vigor daquele Código, que preveja a necessidade de impugnação administrativa necessária (recurso hierárquico impróprio) como pressuposto da impugnação contenciosa”. Considera então o Tribunal este recurso como um pressuposto processual autónomo.
Replico com as consequências que isto terá. Que sentido fará a lei abrir o conceito não só para colocar a tónica na eficácia externa do ato administrativo (artigo 51.º/1 do CPTA), como também para acautelar nos termos do artigo 50.º/3 CPTA os atos lesivos dos particulares, quando ao manter este instituto vem, de forma algo contraditória, recusar o reconhecimento dos direitos dos mesmos?  
O Tribunal tenta justificar que este pressuposto não implica o direito de acesso aos tribunais para obter a tutela jurisdicional efetiva dos direitos. No entanto, e esta é indubitavelmente a parte mais surpreendentemente para mim, estes direitos devem ser exercidos “em sede e momento próprios, visto a garantia de impugnação contenciosa não é ilimitada ou absoluta, permitindo-se ao legislador ordinário alguma margem na definição e enunciação dos pressupostos processuais exigidos para cada um dos meios contenciosos consagrados e disponibilizados no ordenamento jurídico, não existindo no texto constitucional uma imposição que um determinado direito ou interesse legalmente protegido possam e devam ser efetivados por um qualquer ente, num qualquer tribunal/jurisdição e através dum qualquer meio processual à livre escolha de quem pretenda exercê-lo”.  
A verdade é que, ainda que autores como o nosso Professor Regente defendam que o regime foi revogado tacitamente pelo CPTA atual, e que isso deveria arrastar todas as normas que tenham implicações contenciosas, quer a doutrina como a jurisprudência são ainda reticentes ao assunto. A título de exemplo, o Professor Vieira de Andrade considera, tal como os tribunais, a impugnação necessária como um(…) pressuposto processual que constitui um mero condicionamento ou, quando muito, de uma restrição legítima (justificada e proporcional) do direito de acesso aos tribunais, cujo conteúdo essencial não é tocado”. Da mesma forma, o Professor Mário Aroso de Almeida defende os recursos hierárquicos necessários, sendo o seu uso, “(…) apenas um requisito de observância do qual depende a abertura da via impugnatória”. Semelhantemente ao Professor Vieira de Andrade, Mário Aroso de Almeida classifica-os como um “ónus imperativo se o particular quiser lançar mão da via contenciosa”.

Conclusão
Creio que, apesar da aparente abertura do CPTA no sentido de eliminar as impugnações contenciosas necessárias, a verdade é que ainda não está consagrado o que Vasco Pereira da Silva nomeia como um direito fundamental de impugnação contenciosa de atos administrativos.
Como vimos, a mudança na lei foi tão subtil que impede a plena eficácia do instituto, bem como obsta a que os tribunais concluam por uma impugnação contenciosa sem barreiras, e adiram tão-somente à doutrina que interpreta restritivamente o regime: Assim, revogou-se de facto a regra geral do CPTA, mas tal não tem alcance para alterar leis avulsas, dispostas em lei especial. Assim, a tutela dos direitos dos particulares neste domínio existe, mas esvanece com o tempo. 
Em minha opinião, como de resto já saberão, não é assim que deveria funcionar.  

Bibliografia

ANDRADE, José Carlos Vieira de, “Lições de Direito Administrativo”, 5.º Edição
ANDRADE, José Carlos Vieira de, “A Justiça Administrativa”, 2016
SILVA, Vasco Pereira da, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2009
ALMEIDA, Mário Aroso de, “Manual de processo administrativo”, 2010

Ana Rita Oliveira, aluna n.º26084

[1] O artigo dispõe que: “N.º 1 – O CPTA revisto entra em vigor no prazo de 60 dias após a sua publicação:   2 de dezembro de 2015
N.º 2 - O CPTA revisto aplica-se apenas aos   processos que se iniciem após a sua entrada em vigor (por isso, não existem disposições da lei no tempo, aplicando-se o CPTA aos processos pendentes e o CPTA revisto aos que dêem entrada em juízo a partir do dia 02/12/2015)”

[2] O artigo n.º 96/1 do DL 100/89 dispõe que “Da organização das listas cabe reclamação, a deduzir no prazo de 30 dias consecutivos a contar da data da publicação do aviso a que se refere o n.º 3 do artigo anterior”.
[3] O n. º3 dispõe que “A reclamação não pode fundamentar-se em contagem de tempo de serviço ou em outras circunstâncias que tenham sido consideradas em listas anteriores”
[4] O artigo 97.º/1 dispõe que “Das decisões sobre as reclamações cabe recurso para o membro do Governo competente, a interpor no prazo de 30 dias consecutivos a contar da data da receção da notificação”.

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