Das
Impugnações Administrativas e Contenciosas Necessárias: um regime revogado pelo
CPTA?
Análise
Jurisprudencial
Este artigo procura fazer uma
análise da jurisprudência no sentido de perceber se, como defendem alguns
Professores, o instituto das impugnações administrativas deixou de as exigir
como necessárias e, como diria Vasco Pereira da Silva, passaram a ser meramente
“úteis”. Assim, gostaria de propor um “antes e depois”: começo por analisar um
acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul que julga ao abrigo
do anterior CPTA, de forma a melhor percebermos os efeitos no caso concreto;
passo depois uma análise da doutrina e de um acórdão mais recente, para, juntos,
averiguarmos se houve alguma mudança substancial.
Crítica
ao Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 16/04/2015, referente ao
Processo n.º 11094/14
Introdução
e Enquadramento Factual
O acórdão em apreço data de 16
de abril de 2015, não contendo por isso as alterações mais recentes decorrentes
do artigo 15.º do D.L. n.º
214-G/2015, de 2 de outubro[1].
Este acórdão reflete a história
de uma tumultuosa relação laboral, que cabe no âmbito administrativo por força
dos artigos 1.º e 2.º/1 do Código de Procedimento dos Tribunais Administrativos
e dos artigos 4.º/1 a) do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Ficais (doravante, e respetivamente, CPTA e ETAF).
A autora (doravante, A.) começa
a trabalhar para a ré (daqui para a frente, R.) dia 16 de janeiro de 1987. Cinco
anos depois, em 30/01/92, a mesma é suspensa por sanção disciplinar que vem a
ser anulada pelo Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão que data de 4 de
dezembro de 1997. Depois de requerer que fosse reintegrada a dia 14 de janeiro
de 1998, e mais uma vez, nada lhe tendo sido dito, a autora apresenta-se ao
serviço no dia 17 de Abril de 1998, e pedem-lhe que fale com o Presidente do
Serviço Nacional de Proteção Civil, que por sua vez só a recebe 3 dias depois
para a informar de que “não valia a pena atribuir-lhe funções pois sabia da
existência de um processo disciplinar que estava a correr contra A. e que, como
tal, deveria aguardar o desfecho desse processo, o que a recorrente fez”.
A. recebe, entretanto, um ofício do Ministério da Administração Interna, cerca de cinco meses depois, “onde lhe era comunicado que contra si estava a correr termos um processo disciplinar, cujo conteúdo nunca lhe foi dado, no entanto, a conhecer”.
A. recebe, entretanto, um ofício do Ministério da Administração Interna, cerca de cinco meses depois, “onde lhe era comunicado que contra si estava a correr termos um processo disciplinar, cujo conteúdo nunca lhe foi dado, no entanto, a conhecer”.
O razão pela qual a autora
recorre novamente ao tribunal tem fundamento aquando da publicação da lista de
antiguidades, publicitada pelo Aviso n° 4589/2006 no D. R., nº 73, de 12 de abril e conhecida por A. a 18 de
Abril de 2006. Esta lista conta 10 anos, 2
meses e quinze dias de antiguidade para A., desatendendo totalmente à situação
da mesma, que esteve ausente cerca de 5 anos, quer por doença (e com baixa
nesse sentido), quer pela sanção que sofreu.
Ora, no campo do regime de
férias, faltas e licenças dos funcionários e agentes da Administração Pública
há o DL 100/89, que estipula com clareza no seu artigo 96/1.º[2]
a figura do da reclamação hierárquica necessária nesses casos o que, de resto,
se contende com o regime que o CPA e o CPTA possuem neste âmbito (artigos BLÁ).
No entanto, o n. º3 do mesmo artigo vem limitar essa faculdade nos casos já
considerados[3]
em listas anteriores, o que tinha acontecido nas publicitadas através dos
correspondentes avisos em março de 2001, março de 2003, abril de 2004 e março
de 2005, listas nunca impugnadas pela autora.
No entanto, desta feita, A. fez
efetivamente reclamação por via de requerimento no dia 11/05/2006, ao qual
nunca chegou a ter reposta. Passados os 30 dias úteis que o artigo 96.º/3
dispõe, o dirigente nada diz, nem tão pouco toma as diligências necessárias a
que o DL obriga no mesmo artigo.
Face ao silêncio da
Administração (que constitui, como sabemos, uma omissão administrativa), A.
nada faz, violando o disposto no artigo 97.º/1[4]
do DL já referido, que pede ainda recurso das decisões sobre reclamações. É de
ressalvar que estamos perante um ato administrativo
praticado já no domínio da vigência do atual CPTA, e já não na altura em que o
indeferimento da reclamação valia como aceitação do mesmo.
A autora pede então,
cumulativamente, que: 1 – Haja contagem do seu tempo de serviço desde 1992;
2 - O pagamento de
vencimentos devidos durante o período em que esteve ausente por efeito da
sanção disciplinar aplicada, bem como o seu reposicionamento nos escalões e índices
remuneratórios desde 30/01/1992
Posição
do Tribunal
O tribunal, não surpreendentemente, não
reconheceu o direito da autora a estar em juízo, pelo que emite sentença
baseada na intempestividade da pretensão.
Integra, por sua vez, no plano do interesse
processual a necessidade em impugnar administrativamente para depois o fazer em
sede contenciosa. Há então o que parece ser uma relação dialética entre os dois
pelo que, sem a utilização das vias legalmente estabelecidas para tentar obter
a resolução do litígio por via extrajudicial, o Tribunal não reconhece o
interesse do autor e absolve o réu do pedido.
Ainda que ceda ao admitir que, de facto, a autora
tentou “infrutiferamente obter o resultado
pretendido pela via extrajudicial legalmente estabelecida”, o Tribunal não pode
conceder-lhe o pedido.
Crítica
ao Acórdão em Apreço
Este acórdão mostra
perfeitamente como, apesar de o legislador tentar abranger o máximo de
situações da vida possíveis, a verdade é que há momentos em que a justiça do
caso concreto pode ficar esquecida entre formalidades e burocracia.
A ratio deste instituto, agora alegadamente revogado de forma tácita
pela lei, é o reconhecimento do interesse pessoal do autor e da dimensão da sua
necessidade de tutela judiciária; assim a lei forçava o autor a usar de todos
os meios para, pela via extrajudicial legalmente estabelecida, resolver o seu
litígio. Se o autor recorrer diretamente à via judicial a sua pretensão
deveria, por isso, ser rejeitada, por falta do ónus de impugnação decorrente da
lei.
O Professor Vasco Pereira da
Silva critica desde sempre a figura dos recursos hierárquicos necessários por
violar o princípio da plenitude da tutela dos direitos dos particulares,
expresso no artigo 268.º/4 da Constituição da República Portuguesa (doravante,
CRP), o princípio da separação entre a Administração e a Justiça (artigos
114.º, 205.º e seguintes, 266.º e seguintes), o princípio da desconcentração
Administrativa por via do artigo 267.º, n.º 2 da CRP. É para este Professor um
instituto inconstitucional que, não só reduz muitíssimo o prazo das impugnações
administrativas (que, segundo o prazo do artigo BLÁ é de 1 ano) para somente de
30 dias à luz do artigo 168.º, n.º 2 do CPA. Ainda que o mesmo não suceda para
o prazo da impugnação administrativa (onde o prazo é sempre de 3 meses à luz do
artigo 58.º/1 do CPTA), não deixa de ser um problema que a lei há muito devia
ter eliminado por completo ou, nas palavras do Professor, “uma das mais
persistentes manifestações dos traumas de infância do contencioso
Administrativo, enquanto resquício do administrador-juiz”.
Por minha parte, parece-me
desproporcional que se feche por completo a via contenciosa a um particular e,
dessa forma, se negue os seus direitos por o que pode ter sido um
desconhecimento da sua parte. Ainda que saiba que a ignorância da lei não é
arguível (artigo 6.º do Código Civil), a verdade é que os particulares não têm
conhecimento de todos os seus direitos e garantias. E isso é um erro de falta
de educação e informação que não me compete comentar, mas que a lei deveria
certamente tutelar. O que sei é que, se um particular tiver que fazer um recurso
hierárquico necessário, expresso em lei especial, deveria haver uma obrigação
de informação por parte da Administração no sentido de, de uma forma
transparente, o mesmo poder julgar se pretende manter essa porta aberta.
Caso contrário não estaremos nós
a premiar a desresponsabilização da Administração que cometeu o erro (ou não)
suscetível de recurso/reclamação, e a obrigar a uma fiscalização por parte dos
particulares (que, de resto, muito poucos têm efetivo conhecimento), ao mesmo
tempo que a justiça lhes fecha portas em nome da não-utilização de uma
garantia, que ainda para mais possui natureza administrativa?
É até, eu diria, uma questão de
boa-fé administrativa, na medida em que o problema do particular é
desvalorizado com base nos atos que o mesmo tomou, ou não, em sede
administrativa. E com base nisso, em sede jurisdicional, o seu direito não pode
ser reconhecido.
Atualmente: O Regime do CPTA e a
Prática Jurisprudencial Atual
Vasco Pereira da Silva crê, com
um olhar positivo sobre a matéria, que “(…) forçoso é concluir que o Código de
Processo Administrativo consagrou o afastamento da regra do recurso hierárquico
necessário, bem como de outras garantias administrativas suscetíveis de serem
consideradas como necessárias, estabelecendo, nos termos da Constituição, um
regime jurídico que permite o imediato acesso à apreciação contenciosa de atos
administrativos”.
O que acontece então a artigos
como o 185.º do CPA, que dispõe que “as reclamações
e os recursos são necessários ou facultativos, conforme dependa, ou não, da sua
prévia utilização a possibilidade de acesso aos meios contenciosos de
impugnação ou condenação à prática de ato devido”? E o que acontece a todas as
leis avulsas que o consagram?
Uma forma de
tentar responder a estas perguntas é avaliar a prática jurisprudencial sobre a
matéria. Já vimos um acórdão que se encontrava abrangido pelo antigo CPTA; cabe
agora questionar, com a análise de peças mais recentes, se a prática se alterou,
acompanhando o pensamento de alguns Professores supra mencionados.
Nesta matéria,
e apesar da mudança legislativa do CPTA
que deixa de fazer menção expressa ao instituto, os tribunais parecem continuar
a admitir a sua legalidade: Refiro-me, em especial, ao acórdão do Tribunal
Central Administrativo Norte que data de 08-01-2016, e que começa por alegar que, “com o CPTA deixou de ser exigido, em
termos gerais e como condicionante da própria sindicabilidade contenciosa, que
os atos administrativos tenham sido objeto de prévia impugnação administrativa
para que possam ser objeto de impugnação contenciosa, afirmando-se, ao invés, a
regra geral da desnecessidade da utilização da via de impugnação administrativa
para aceder à via contenciosa”, para logo a seguir, rematar que, tal regra, “contida
no artigo 51.º do CPTA, é inaplicável sempre que haja determinação legal
expressa, anterior ou posterior à sua entrada em vigor daquele Código, que
preveja a necessidade de impugnação administrativa necessária (recurso
hierárquico impróprio) como pressuposto da impugnação contenciosa”. Considera
então o Tribunal este recurso como um pressuposto processual autónomo.
Replico com as consequências que isto
terá. Que sentido fará a lei abrir o conceito não só para colocar a tónica na
eficácia externa do ato administrativo (artigo 51.º/1 do CPTA), como também
para acautelar nos termos do artigo 50.º/3 CPTA os atos lesivos dos
particulares, quando ao manter este instituto vem, de forma algo contraditória,
recusar o reconhecimento dos direitos dos mesmos?
O Tribunal tenta justificar que este
pressuposto não implica o direito de acesso aos tribunais para obter a tutela
jurisdicional efetiva dos direitos. No entanto, e esta é indubitavelmente a
parte mais surpreendentemente para mim, estes direitos devem ser exercidos “em
sede e momento próprios, visto a garantia de impugnação contenciosa não é
ilimitada ou absoluta, permitindo-se ao legislador ordinário alguma margem na
definição e enunciação dos pressupostos processuais exigidos para cada um dos
meios contenciosos consagrados e disponibilizados no ordenamento jurídico, não
existindo no texto constitucional uma imposição que um determinado direito ou interesse
legalmente protegido possam e devam ser efetivados por um qualquer ente, num
qualquer tribunal/jurisdição e através dum qualquer meio processual à livre escolha
de quem pretenda exercê-lo”.
A verdade é que, ainda que
autores como o nosso Professor Regente defendam que o regime foi revogado
tacitamente pelo CPTA atual, e que isso deveria arrastar todas as normas que tenham
implicações contenciosas, quer a doutrina como a jurisprudência são ainda
reticentes ao assunto. A título de exemplo, o Professor Vieira de Andrade considera, tal como os tribunais, a impugnação
necessária como um “(…) pressuposto processual que constitui um mero condicionamento
ou, quando muito, de uma restrição legítima (justificada e proporcional) do
direito de acesso aos tribunais, cujo conteúdo essencial não é tocado”. Da
mesma forma, o Professor Mário Aroso de Almeida defende os recursos
hierárquicos necessários, sendo o seu uso, “(…) apenas um requisito de
observância do qual depende a abertura da via impugnatória”. Semelhantemente ao
Professor Vieira de Andrade, Mário Aroso de Almeida classifica-os como um “ónus
imperativo se o particular quiser lançar mão da via contenciosa”.
Conclusão
Creio que, apesar da aparente abertura do CPTA no sentido de eliminar as impugnações contenciosas necessárias, a verdade é que ainda não está consagrado o que Vasco Pereira da Silva nomeia como um direito fundamental de impugnação contenciosa de atos administrativos.
Como vimos, a mudança na lei foi tão subtil que impede a plena eficácia do instituto, bem como obsta a que os tribunais concluam por uma impugnação contenciosa sem barreiras, e adiram tão-somente à doutrina que interpreta restritivamente o regime: Assim, revogou-se de facto a regra geral do CPTA, mas tal não tem alcance para alterar leis avulsas, dispostas em lei especial. Assim, a tutela dos direitos dos particulares neste domínio existe, mas esvanece com o tempo.
Em minha opinião, como de resto já saberão, não é assim que deveria funcionar.
Bibliografia
ANDRADE, José Carlos Vieira de, “Lições
de Direito Administrativo”, 5.º Edição
ANDRADE, José Carlos Vieira de, “A
Justiça Administrativa”, 2016
SILVA, Vasco Pereira da, “O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2009
ALMEIDA,
Mário Aroso de, “Manual
de processo administrativo”, 2010
Ana Rita Oliveira, aluna n.º26084
[1] O artigo dispõe que: “N.º 1 – O CPTA revisto entra em vigor no prazo de 60 dias
após a sua publicação: 2 de dezembro de
2015
N.º 2
- O CPTA revisto aplica-se apenas aos
processos que se iniciem após a sua entrada em vigor (por isso, não
existem disposições da lei no tempo, aplicando-se o CPTA aos processos
pendentes e o CPTA revisto aos que dêem entrada em juízo a partir do dia
02/12/2015)”
[2] O artigo n.º 96/1 do DL
100/89 dispõe que “Da organização das listas cabe reclamação, a deduzir no
prazo de 30 dias consecutivos a contar da data da publicação do aviso a que se
refere o n.º 3 do artigo anterior”.
[3] O n. º3 dispõe que “A
reclamação não pode fundamentar-se em contagem de tempo de serviço ou em outras
circunstâncias que tenham sido consideradas em listas anteriores”
[4] O artigo 97.º/1 dispõe
que “Das decisões sobre as reclamações cabe recurso
para o membro do Governo competente, a interpor no prazo de 30 dias
consecutivos a contar da data da receção da notificação”.
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