domingo, 16 de dezembro de 2018

Sentença (Simulação) em co-autoria c/Catarina, Filipe e Silvio









Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa

Campus de Justiça

Av. D. Manuel I, n.º 273 – Edif. H; 4.º Piso

 1900-097 Lisboa




Proc.Nº 588/18

 Ação Administrativa

311019790



CONCLUSÃO - 16-12-2018 

(Termo eletrónico elaborado por Escrivão Auxiliar Maria das Dores Esquizofrénicas da Silva)

=CLS=

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SENTENÇA

                               I.        Relatório


Lisboa é um Estaleiro, SA, NIPC 352789624, com sede na Rua Vasco da Gama, n.º 3, em 1500-294 Lisboa intentou a presente ação administrativa de impugnação de ato administrativo e de condenação à prática do ato devido contra Município de Lisboa, com sede Rua Praça do Município, 1500-638 Lisboa, enquanto demandada principal na ação e Associação de Moradores “De lisboetas para Lisboetas”, com NIPC n.º 163535232, com sede na Rua de Santo André, n.º 4, 1500-323 Lisboa e Associação de Moradores “Lisboa para Melhor”, com NIPC n.º 546192339, com sede na Rua Vieira do Minho, n.º 9, 1500-777 Lisboa, ambas como Contrainteressadas no processo, em litisconsórcio passivo necessário, conforme preceituado nos artigos 10.º, n.º 1 e 57.º do CPTA, peticionando: declaração de nulidade da decisão de colocação do terreno em hasta pública; declaração de anulabilidade da decisão de aprovação do “Megaprojecto”; condenação à prática da Operação Integrada de Entrecampos e conformidade com a legalidade.

Para tal, e em síntese, alega que celebrou com a Ré um contrato de concessão de obras públicas no lote “Y” onde se convencionara igualmente, um direito de preferência real sobre o lote “C”; que foi deliberado em pela Assembleia Municipal a colocação desse terreno em hasta pública, considerando a A. consubstanciar violação do contrato outorgado e violação das regras imperativas de deliberação colegial, dado ter preterido as regras de quórum;  impugna, de igual forma, a ação administrativa de construção do “Megaprojecto” por violar as disposições do PDM, da alteração no projeto da área de edificação para habitação constante na Recomendação n.º 2/77 da Assembleia Municipal; e por desconsiderar os pareceres negativos, que alegou terem caráter obrigatório, da ANAC, NAV e ML;  mais alega que, no que concerne à condenação à prática da Operação Integrada de Entrecampos (doravante OIE) em conformidade com a legalidade, alicerça a petição na ilegítima escolha de procedimento por ajuste direto em direta contradição com o positivado no CCP que, alega, imporia a escolha de concurso público.

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Contestou a Ré impugnando parcialmente a facticidade alegada.

Invoca para tanto, que a cláusula do contrato de concessão que prevê o direito real de preferência é nula, nos termos conjugados da al. H) do art.º 33.º da Lei n.º 75/2013 e do art.º 83.º do Decreto-Lei nº 280/2007, sem embargo das regras gerais de direito real invocando os art.º 421.º, 413.º, 875.º e 220º. Do C. Civil. No que concerne à falta de quórum da deliberação da Assembleia Geral para a venda do terreno C em hasta pública, alegada pela A., a R. invoca que a deliberação foi tomada em 2.ª reunião convocada após a impossibilidade de deliberar na 1.ª por falta de quórum. Alega, em síntese a extemporaneidade dos pareceres da ANAC, NAV e ML bem assim alega a concordância tácita das entidades com o projeto. Reforça que o projeto prevê diversas medidas que atestam a segurança da construção, nomeadamente quanto à utilização de vidros de alta qualidade, antirreflexo, bem como quanto à altura dos prédios e antenas. Surpreendentemente, o R. conclui a contestação com um pedido ininteligível porquanto pede simultaneamente a procedência da ação e a absolvição do R..

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Citados para o efeito, os contrainteressados vieram apresentar contestação na qual pugnam pela improcedência da ação aderindo à posição defendida pelo R., bem como manifestando o superior interesse na realização do projeto para os moradores que defendem dotar a área de mais valias sociais e económicas, alertando para o estado de calamidade e deterioração do lote “C” que adjetivam de “lixeira a céu aberto”, referindo serem palco de toxicodependência e prostituição. Alegam que o projeto em nada belisca o PDM, contrariando a A. Quanto à alegada desarmonia estética do projeto, bem como quanto ao tipo de vidro escurecido, com proteção ultravioleta, obstando ao eventual encadeamento de condutores.

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Finda a fase dos articulados, o Ministério Público emitiu parecer, nos termos do art.º 85.º do CPTA, onde formula as seguintes considerações:

 - “Se ficar provado que, como alega o RR., em 28 de setembro de 2018 ocorreu nova deliberação, em conformidade com as exigências de quórum, entendemos que improcede a alegação de nulidade da Deliberação da decisão de colocação do terreno da Feira Popular em Hasta Pública;

 A cláusula do direito de preferência alegado pela AA. padece do vício de nulidade, por contrariedade à lei;

 O mínimo de superfície de pavimento destinada a habitação de 25% previsto para o terreno da antiga Feira Popular não se aplica ao Megaprojeto, não constituindo, por isso, fundamento da ilegalidade da decisão de aprovação do Megaprojeto, uma vez que não pode haver desrespeito por preceitos legais que não são aplicáveis;

A área a considerar para efeitos de edificabilidade abrange toda a área da POLU, nela incluindo as áreas das vias e espaços envolventes que integram o domínio público e não apenas os limites cadastrais dos terrenos da antiga Feira Popular, pelo que improcede a alegação da AA. da invalidade do Megaprojeto por alegadamente incluir terrenos vizinhos e parcelas da via pública na aferição daquele limiar mínimo de area prevista para habitação.

O Parecer da ANAC é obrigatório e vinculativo. Apenas se for dada como provada a extemporaneidade da emissão do parecer, nos termos do artigo 13.º, n.º 6 se considera haver concordância da ANAC. Caso contrário, e tratando-se de parecer desfavorável, a decisão padecerá de vício nos termos do artigo 68.º, alínea c) do RJUE.

O Parecer do ML é obrigatório e vinculativo, pelo que a licença padece de nulidade por o ter desconsiderado e, consequentemente, também serão inválidas as decisões que tenham a licença por subjacente;

O Parecer da NAV não é obrigatório nem vinculativo;

Tendo em conta todas as violações ao PDML presentes, a decisão de aprovação do MPE é nula, nos termos dos artigos 24.º, n.º 1. alínea a), 67.º e 68.º, alínea a) do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação;

Da eventualidade de ser declarada a invalidade do procedimento por ajuste direto não decorre um dever da Administração em proceder à realização de concurso público. Assim, o pedido da AA. de condenação da Administração à realização da Operação Integrada de Entrecampos (pedido c) da P.I.) não só não é um meio processual adequado para a prossecução dos interesses da AA., como também não tem fundamento, na medida em que não existe um dever legal da prática deste ato em concreto por parte da Administração.

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Procedeu-se à realização da audiência final.

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            II.        Saneamento

Mantêm-se os pressupostos de regularidade e validade da instância.

A A. apresentou a devida procuração forense que replicou todo o processado. Apresentou, também, registo predial do direito real alegado na douta petição. O R. e os contrainteressados não apresentara oposição, não se conhecendo quaisquer exceções dilatórias ou nulidades processuais que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

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III. Objeto do Litígio


A questão decidenda nos presentes autos prende-se em aferir se a Deliberação da decisão de colocação do terreno em hasta pública padece de nulidade.

Mais se deverá aquilatar se a Deliberação de decisão de aprovação do “Megaprojecto” está ferida de anulabilidade.

Está ainda submetido à apreciação de mérito a aferição da condenação do R. à prática de operação integrada de Entrecampos em conformidade com a legalidade.

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IV. Fundamentação de Facto

Factos provados


1)                 O prédio urbano com a matriz n.º 1087, freguesia das Avenidas Novas, situado entre a Avenida da República e a Avenida das Forças Armadas por um lado, e pela Avenida 5 de outubro e pela Rua Doutor Eduardo Neves por outro é propriedade da Câmara Municipal de Lisboa;

2)                 Em 20/01/01, a Câmara Municipal procedeu à separação do prédio urbano supra identificado em três lotes distintos, designados por “A”, “B” e “C”, sendo o último comumente designado de Feira Popular;

3)                   Desde 2003 que os referidos terrenos se encontram devolutos após encerramento e consequente retirada de equipamentos da “Feira Popular”.

4)                 Em 03/03/15, a A. celebrou um contrato de concessão de obras públicas com o R. do terreno “Y”, confinante com o terreno “A” a fim de construir e explorar um parque de estacionamento;

5)                 Em 12/09/2018 foi deliberada a requalificação dos lotes através da “Operação Integrada de Entrecampos” que incluía a venda em hasta pública do lote “C” e, simultaneamente a construção do “Megaprojecto de Entrecampos” nos lotes “A” e “B”.

6)                 O “Megaprojecto” previa a construção de edifícios envidraçados de forma esférica e sobre as vias públicas, sendo uma forma de recordação e homenagem a “Joselito” e ao “Poço da Morte”, outrora grande atração da Feira Popular.

7)                 A deliberação, pela Assembleia Municipal, de aprovação de construção do “Megaprojeto” ocorreu em 16/09/2018, numa reunião sem quórum mínimo de deputados presentes.

8)                 A Associação de moradores “Os Alfacinhas” opõe-se à edificação daquele “Megaprojeto”.

9)      No contrato de concessão de obras públicas ficou convencionado um direito de preferência com eficácia Real do lote “C”.  

10)  A Câmara Municipal celebrou, em 22/09/18, com a sociedade “Lisboa, menina e moça, SA” um contrato de empreitada de obras públicas por via do procedimento contratual de Ajuste Direto.

11)  Em 07/11/18, o Ministério Publico emite um parecer que põe em causa a legalidade do empreendimento.

12)             Os vidros usados nas edificações envidraçadas são de alta qualidade, antirreflexo com efeito de polarização que impede o encadeamento dos condutores.

13)             A ANAC não emitiu parecer.

14)             As Associações de Moradores de “Lisboetas para Lisboetas” e “de Lisboa para melhor” prosseguem fins não lucrativos, concretizados no apoio aos moradores;

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Factos não provados


Não resultou provada a seguinte factualidade:

a)      A deliberação de colocação do terreno “C – Feira Popular” ocorreu em 14 de setembro, em reunião sem quórum.  

b)      A deliberação de colocação em hasta pública do terreno “C – Feira Popular” ocorreu em reunião da Assembleia Municipal de 28/09/18.

c)       O gestor de procedimento pediu um parecer à ANAC.

d)     O gestor de procedimento pediu parecer à NAV e ML em 15/09/18.

e)      A NAV e ML emitiram parecer 30 dias após 15/09/18, ou seja, a 15/10/18.

f)       O gestor de procedimento reiterou o pedido de parecer à NAV e ML em 16/10/18 sem resposta.

g)      O “Megaprojeto” providencia pela conformidade da altura dos prédios e antenas, de acordo com o legalmente permitido.

h)      O “Megaprojeto” constitui uma mais valia do ponto de vista urbanístico, arquitetónico, de segurança, ambiental e económico.

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A restante matéria alegada pelas partes e que não é acima valorada como provada ou não provada ou corresponde a matéria conclusiva, a apreciação sobre o aspeto jurídico da causa ou não tem qualquer relevo para a decisão da causa.

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Motivação sobre a decisão da matéria de facto


Na fundamentação da sentença, após analisar os factos que considera provados e não provados, o julgador deve analisar criticamente as provas, indicando as ilações extraídas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, tomando em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas por lei ou por regras de experiência (cf. artigo 607.º, n.º 4, do Código de Processo Civil – de ora em diante apenas designado pela sigla CPC).

Cumpre atentar que, tratando-se, assim, de ação administrativa destinada à impugnação de ato administrativo e condenação à prática de ato devido, à autora compete alegar e provar um conjunto de factos geradores do pedido, traduzidos, designadamente, na invalidade dos atos administrativos quinados que, determinam o direito pretendido – cfr. art.º 342.º, n.º 1, do CC. Ao município cabe a alegação e o ónus da prova do facto impeditivo do direito daquele – cfr. art.º 342, n.º 2 CC) e/ou a contraprova do alegado pelo A..

Destarte, a decisão da matéria de facto provada, supra discriminada, resultou da análise e conjugação da prova testemunhal e da prova documental junta aos autos, aliadas às regras de plausibilidade e experiência comum.

Concretizando.

No que concerne à factualidade vertida nos pontos n.ºs 1 a 8 encontra-se admitida por acordo, uma vez que se tratam de factos aceites pelas partes nos seus articulados, cfr art.º 15.º e 17.º da Contestação do R.

O facto elencado no ponto 9 encontra-se plenamente provado através do teor do documento fls 85, correspondente ao Registo Predial do Direito Real invocado. Não se reconhece efeito de prova plena ao doc. Fls 15 e 16, “Contrato de concessão de construção e exploração do parque de estacionamento, dado tratar-se de documento particular sem o devido reconhecimento de assinatura.

Quanto ao ponto 10, o Tribunal formou a sua convicção com base no doc. Fls 17 a 19, “Ajuste Direto para a empreitada de trabalhos relativos às parcelas “A” e “B” relativo ao “megaprojecto de entrecampos”.

A factualidade vertida no ponto n.º 11 resulta do doc. Fls. 20 a 23, “Parecer Consultivo n.º 100/2018.

No que tange à factualidade ínsita no ponto 12, alude-se, ao depoimento claro e equidistante, e por via disso, imparcial, prestado pela testemunha Mário José Impecável, que afiançou ao Tribunal que os vidros “têm uma capacidade antissísmica (...) o efeito polarizado impede o encadeamento dos condutores, absorvendo os raios solares, nomadamente os ultravioletas”.

Relativamente ao facto elencado no ponto n.º 13, não se tendo logrado provar pela sua existência, deverá considerar-se provado a não receção, conforme alegado pelo R.

No que concerne à factualidade consignada por não provada, o Tribunal considerou que não foi carreada para os autos prova suficiente para sustentar a convicção sobre a sua verificação ou pelo menos um juízo e certeza razoável quanto à sua ocorrência. 

Senão vejamos.

Relativamente aos factos ínsitos nos pontos a) e b), foram carreados para os autos elementos probatórios contraditórios, fls. 24 e 43. Competia à R. alicerçar a prova da efetiva Deliberação de venda em hasta pública do lote de terreno, conforme fora sugerido pelo Ministério Público no parecer junto aos autos. Contudo, a R. não acolheu tal indicação. Não apresentou qualquer prova testemunhal ou documental consonante. O art.º 34.º do CPA é exemplificativo. Não foi apresentada nem a correspetiva ata da reunião. Nesta conformidade, o Tribunal não ficou convencido suficientemente sobre os factos, sendo que ante a dúvida razoável sobre a ocorrência destes factos, e face ao disposto no art.º 414º CPC, tratando-se de facto invocado pelo R., estaremos perante uma situação de non liquet, desfavorável àquela.

Relativamente aos pontos c), d) e f) não se encontra nos autos qualquer meio probatório do alegado pelo R., nem as missivas enviadas, nem comprovativos de receção, nada a não ser um constrangedor vazio probatório do R., sobre quem impendia o ónus da prova, nos termos do art.º 342.º, n.º 1 do Código Civil.   *******

Quanto ao facto vertido no ponto e), resulta da apreciação dos docs. Fls 27 a 29, relativos aos pareceres da NAV e ML respetivamente, que ambas teriam efeito a partir de 15/10/2018, o que não é o mesmo que afirmar que essas mesmas propostas só foram recebidas nesse dia. Pelo contrário, estando aposto nos docs a data em que teria efeito, certamente terá sido redigido, expedido e recebido em data anterior. No entanto, o R. não logrou provar a data de receção dos pareceres alegadamente solicitados, o que nem seria difícil dado que os documentos administrativos terão aposto o carimbo com a data de entrada nos serviços administrativos.

Os factos elencados no ponto g) encontram-se em contradição com o que resulta da análise do ponto 6 do parecer da NAV, fls 28. Acresce que, o depoimento da testemunha Filipa Sólido, mostrou-se frágil e contraditório tendo inclusive admitido não ter sido desencadeado nenhum estudo “escrito” relativamente à segurança e robustez das infraestruturas, principalmente no que à prevenção antissísmica diz respeito. Pese embora, tenha tentado persuadir o tribunal do contrário, revelou certa indiligência.

O facto elencado no ponto h), extrai-se da conjugação do exposto no doc. emitido pela ODU, fls 54 a 56, das fotografias constantes nas fls 57 e 58, em conjugação com o depoimento da única testemunha indicada pelo A. ouvido pelo Tribunal. A testemunha indicou ter tido conhecimento indireto do Megaprojeto “ouviu falar”; quando questionada relativamente ao parecer do ML referiu “ter ouvido falar”; pese embora seja residente na área onde se pretende edificar o “Megaprojeto” e “passar por aquela zona diariamente” afirmou não ter conhecimento, nem ter ouvido falar de comportamentos de prostituição e toxicodependência naqueles terrenos. Através das fotografias juntas pelos contrainteressados, fls 57, o Tribunal constata o estado deplorável dos terrenos, com resíduos e entulhos diversos. Ora, resulta das regras de experiência comum que tais terrenos, numa zona tão central como a dos terrenos in casu, constitui cenário frequente para aquelas práticas. Concomitantemente, defende a testemunha que “se pretende construir um edifício envidraçado que, não só não é exequível como não tem nada a ver com a envolvência histórica e pitoresca das Avenidas Novas. Trata-se aqui, de opinião subjetiva que não será valorada de forma probatória dado carecer de qualquer suporte científico ou técnico. Ainda assi, este Tribunal não pode dar como provado o facto elencado no ponto h) uma vez que todos os meios de prova deverão ser concatenados e não analisados isoladamente pelo que perante pareceres menos favoráveis e a ausência de outros, não pode o Tribunal, per si, fazer esta valoração, concluindo-se pela insuficiência probatória.

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V. Fundamentação de Direito

Atendendo ao thema decidendum principal nos presentes autos cumpre, antes de mais, caracterizar o direito de preferência convencionado entre a A. e o R. .

Do Direito de Preferência sobre o terreno “Feira Popular”

Ambas as partes justificam as suas pretensões baseando nos dispostos do regime jurídico do património imobiliário (decreto lei nº. 280/2007), porém o artigo referente ao direito de preferência (83º) do diploma acima referido, insere-se no seu capítulo III que corresponde ao âmbito do domínio privado (artigo 31º e ss).

Então estando em causa uma situação de gestão imoveis das autarquias, só são aplicáveis as disposições gerais do RJPIP nos termos do artigo 1º nº. 1 Alínea a, nomeadamente o artigo 2º a 21º.

Então, assim sendo, estamos no âmbito de aplicação do Regulamento de Alienação de Imóveis Municipais do Município de Lisboa (RAIMML) de 6 de Novembro de 2008, publicado no 3º Suplemento ao Boletim Municipal nº. 768, e retificado no 1º Suplemento ao Boletim Municipal nº 981, de 6 de Dezembro de 2012.

De acordo com o seu artigo 13 nº 3, o recurso a hasta pública é o modo preferencial de alienação dos imoveis localizados em zonas de elevado valor de mercado imobiliário e de acordo o nº. 4 o direito de preferência só é reconhecido aos proprietários de prédios contíguos.

O direito de preferência alegado pelo AA foi constituído num contrato de concessão de obras públicas, vai contra o disposto do 13 nº 4, uma vez que não o constitui como proprietários do lote y, e mesmo sendo este não é contiguo com  o lote C (ver anexo II do AA).

Da declaração de nulidade do terreno em hasta pública


Tendo em consideração a matéria de facto provada e não provada pelo Tribunal, conclui-se que não ficou provada a Deliberação de venda em hasta púbica de 28/09/2018.

O R. admite, cfr art.º 17.º da sua Contestação, a existência da reunião da Assembleia Municipal de 14/09/2018 cuja insuficiência de quórum teria motivado a alegada reunião de 28/09/2018, cfr. Art.º 18.º da Contestação. Ora, não resultou provada a Deliberação de 28/09/2018 por o R. não ter oferecido ao Tribunal prova suficiente (e de acordo com o previamente constatado pelo Ministério Público do douto Parecer, junto aos autos).

Assim, não tendo havido Deliberação em 14/09/2018, nem em 28/09/2018, o ato administrativo impugnado enferma de inexistência. “A declaração de inexistência de um ato administrativo, o qual todavia, noutros trechos da lei, vem claramente equiparado à anulação e à declaração de nulidade enquanto pedido inserido no âmbito de uma ação impugnatória (em especial os art.º 2.º, n.º 2, al a) e 4.º, n.º 2, al a) do CPTA; e, de resto o próprio n.º 4 do art.º 50.º se refere expressamente a este pedido, esclarecendo que as disposições relativas à (…) impugnação (inicial ou sucessiva) de atos nulos ou anuláveis se aplicam, (…) à impugnação de atos inexistentes. (…). Estamos aqui diante de uma mera aparência de ato e não diante de uma verdadeira decisão”. (Cfr. Marco Caldeira, “A impugnação de atos no novo CPTA: âmbito, delimitação, pressupostos”, in Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA, Ed. AAFDL, 2016 ).

De acordo com Mário Aroso de Almeida (Manual de Processo Administrativo, 2ª Ed, Almedina, 2015) “as ações de declaração de inexistência de atos administrativos não são ações de impugnação, porque, quando não existe ato administrativo, não há objeto a impugnar, mas ações meramente declarativas ou de simples apreciação às quais, por razões de ordem prática, determina, em todo o caso, que se apliquem aspetos (…) do regime de impugnação de atos administrativos”.  

Assim, compete pronunciar sobre a ilegalidade substantiva do ato impugnado. Conforme alega a A. nos art.º 8.º, 15.º e 44.º da P.I., assim como o teor do documento, fls 24, que corresponde ao Anexo VI da P.I., a reunião carecia de quórum legal.

Nos termos do n.º 1 do art.º 34.º do Regimento da Assembleia Municipal de Lisboa, em conjugação com o n.º 1 do art.º 29.º do CPA, seria imperativa a presença da maioria do número legal dos seus membros para que aquele órgão pudesse deliberar. Nada impede a realização de reunião, mas sem votação, sem deliberação. Pelo que, teria de ser convocada nova reunião, com a mesma ordem do dia, com um intervalo mínimo de 24 horas.

Assim sendo, nos termos do art.º 161.º, n.º 2, al h) do CPA qualquer Deliberação ocorrida na reunião da Assembleia da Municipal de 14/09/2018 está ferida de nulidade. O decretamento da nulidade da Deliberação de 12/09/2018 impõe, concomitantemente, a nulidade de todos os outros atos consequentes que com aquela estejam conexos diretamente.

Nestes termos, julga-se o pedido de nulidade da Deliberação de venda do terreno em hasta pública procedente.

Da declaração de anulabilidade do Megaprojecto


O pedido de declaração de anulabilidade apresentado pelo autor é fundamentado por: desconsideração da recomendação nº2/77 da Assembleia municipal; violação do índice de edificabilidade previsto para os terrenos do megaprojeto; desconsideração de pareceres; violação do Plano Diretor Municipal de Lisboa (doravante, PDML).

Começando pela desconsideração da recomendação n.º 2/77 da Assembleia Municipal, os argumentos apresentados pelo Ministério Público parecem procedentes: a Recomendação invocada não se aplica ao Megaprojeto, tem uma incidência diversa. Além de que a Recomendação é um parecer e, à luz do artigo 91.º/2 do CPA, será um parecer não vinculativo. Mesmo que incidisse sobre o Megaprojeto, não seria um instrumento vinculativo que vinculasse este ato em termos de validade.

É, ainda, invocada, a desconsideração de pareceres: quanto a este ponto, o tribunal adere às posições deduzidas pelo Ministério Público, em parecer. Com efeito, os pareceres em direito do Urbanismo: por regra, são obrigatórios; a omissão de parecer obrigatório acarreta consigo a consequência jurídica da nulidade; e, normalmente, quando um parecer é de sentido negative, considera-se tal parecer obrigatório.

Sobre o parecer da ANAC, nos termos do artigo 5.º do Decreto n.º48542, por remissão do artigo 13.º/1 do RJUE, temos a dizer que, de facto, este parecer era vinculativo e obrigatório; e tendo este sido desconsiderado, a decisão de aprovação do megaprojeto era nula, nos termos do artigo 68.º, alínea c) do RJUE.

Sobre o parecer do ML, citando o parecer do Ministério Público, cuja douta opinião o tribunal, neste ponto, adota:  Constata-se que houve efetivamente emissão do parecer pela ML em tempo útil. Por sua vez, da articulação do artigo 12.º, n.º 3 do EML (Estatuto do Metro de Lisboa) e n.º 7 do artigo 13.º do RJUE, resulta o caráter vinculativo deste parecer, pelo que padece de nulidade qualquer licença emitida na sua desconsideração, artigo 68.º, alínea c) do RJUE e, consequentemente, posteriores decisões que tenham aquela licença por subjacente.

Sobre o parecer da NAV: dos seus estatutos e tendo em conta que se trata de uma entidade pública empresarial, infere-se que o seu parecer não é obrigatório nem vinculativo.

Portanto: a decisão que aprova a decisão do Megaprojeto é nula, nos termos do artigo 68.º do RJUE (e não anulável, como invoca o autor – tenha-se em conta que o juiz conhece oficiosamente do Direito, não estando vinculado à pura aplicação das regras invocadas pelas partes). Note-se: nula porque, nos termos da lei, os pareceres da ANAC e do ML são obrigatórios e vinculativos (se num sentido negativo): não porque o tribunal deva interferir nas políticas camarárias, por receio de totais desconsiderações de relevantes pareceres. O tribunal, na sua independência, não se deve preocupar com adotar decisões que procedam a uma “gestão” das decisões administrativas: deve administrar a justiça. Tal destrinça clara de funções é nuclear para assegurar a separação de poderes, princípio consagrado na nossa Lei Fundamental.

Sobre a alegada violação do PDML: cumpre destrinçar dois tipos de argumentos invocados: pelo autor e pelos contrainteressados há diversas referências a conceitos indeterminados, como à vertente cultural e à estética; sobretudo no parecer apresentado pelo Ministério Público invocam-se violações expressas que se reportam a diligências e critérios jurídicos apresentados em fonte normativa – o RPDML.

Ora, sobre os primeiros, não deve o tribunal pronunciar-se. Se for a situação em que, perante conceitos indeterminados, haja que condenar o réu à prática de ato devido, nos termos do artigo 71.º/2 do CPTA, há que apenas explicitar as vinculações a seguir pela administração. Semelhante lógica deve estar presente aqui: os princípios gerais da atividade administrativa, o respeito pelos planos e programas, princípios urbanísticos e ambientais próprios, são vinculações que o tribunal, aqui, deve invocar. Contudo, não se deve substituir à Administração na sua discricionariedade interpretativa ou apreciativa de conceitos bastante indeterminados. Ao poder judicial importa que a concretização pela Administração de tais conceitos respeite o ordenamento jurídico: e nada mais, para assegurar a separação e interdependência de poderes.

Sobre os argumentos invocados quanto a violações de deveres jurídicos e que não se reportem à discricionariedade administrativa que, por respeitar todas as vinculações implícitas, exclui a sindicância pelo tribunal, nomeadamente invocados pelo Ministério Público, em douto parecer, procede a violação invocada ao artigo 4.º, alínea a) e 24.º/4 do RPDML: não houve qualquer estudo de resistência sísmica, exigida pelo PDML. Deste modo, por força dos artigos 24.º/1, a), 67.º e 68.º do RJUE, a decisão de começar o Megaprojeto é nula.

Por tudo o exposto, julga-se o ato de execução do Megaprojeto nulo, sendo o pedido parcialmente procedente para o autor (que invocou a anulabilidade).

Da condenação à prática da Operação Integrada de Entrecampos em conformidade com a legalidade

A AA. formula um pedido de condenação á prática do ato devido, nomeadamente, a Operação Integrada de Entrecampos, em conforme com a legalidade, alegando ser ilegítima a escolha de procedimento por ajuste direto, por ser incoerente com o positivado no CCP, impondo a opção pelo concurso público.

A noção de ajuste direto vem definida no artigo 112.º, n. º2 do CCP, como “o procedimento em que a entidade adjudicante convida diretamente uma entidade à sua escolha a apresentar proposta”. Para a adoção deste procedimento devem ser aludidos dois critérios, nomeadamente, ao critério do valor, presente nos artigos 17.º a 22.º do CCP, sendo este o critério regra, que implica que o contrato fique sujeito a um limite de valor. No caso em apreço, o valor é de 10 500 000,00 euros, como se comprova pelo Anexo IV apresentado pela AA, o que claramente ultrapassa o limite estabelecido pelo artigo 19.º alínea d) do CCP.

Devemos também aludir ao critério material, que vem disposto nos artigos 24.º a 27.º do CCP. Estas disposições são situações taxativas que permitem adoção do ajuste direto independentemente do valor do contrato a celebrar. Para utilizar este critério o órgão competente para a decisão de contratar tem de fundamentar de forma clara e objetiva que a situação em apreço reúne todos os pressupostos previstos em alguma das alíneas mencionadas anteriormente. Ao caso temos de aludir aos critérios materiais previstos no artigo 25.º, relativo aos contratos de empreitadas de obras públicas. Ora, não é possível aplicar ao caso nenhuma das alíneas previstas neste artigo.

Dito isto, tendo sido reunidos e analisados os meios de prova, resta concluir, quanto a esta questão, que o contrato é inválido, por vício de nulidade, podendo esta ser invocada a todo o tempo, de acordo com o artigo 162.º do CPA, assim como o artigo 283.º, n.º 1 do CCP. De facto, este devia ter sido realizado sob a forma de concurso público. Este é um procedimento concorrencial, dado a conhecer através de anúncio publicado no Diário da República, assim como no Jornal Oficial da União Europeia quando o valor do contrato a celebrar for superior aos limiares comunitários, tendo em conta o disposto nos artigos 130.º e 131.º do CCP. Neste procedimento os operadores económicos começam desde logo por apresentar propostas, o que significa que não existe uma fase de avaliação da capacidade técnica e/ou financeira dos concorrentes, ou seja, não existe nenhuma fase prévia de qualificação dos concorrentes. Este procedimento pode ser adotado sempre que a entidade adjudicante assim o entenda, com a ressalva de que, quando o valor do contrato a celebrar for superior aos limiares europeus de contratação pública, o anúncio deve ser obrigatoriamente publicado no Diário da República e no Jornal Oficial da União Europeia.

Assim, deverá ser declarada a invalidade do procedimento de ajuste direto. No entanto, daqui não decorre que a Administração tem um dever legal de proceder á realização de um concurso público.

Vejamos, a aludida consagração legal, nos artigos 66.º e seguintes do CPTA surge como corolário da previsão, no n.º 4 do artigo 268.º da CRP, que prevê como característica do princípio da tutela jurisdicional efetiva, a possibilidade de os tribunais condenarem a Administração à prática de atos, quando legalmente devidos. (Acórdão Tribunal Central Administrativo Norte de 15 de setembro de 2016, processo n.º 00584/14.6BEPRT).

    “O processo de condenação é um processo em que o autor faz valer a posição subjetiva de conteúdo pretensivo de que é titular, pedindo o seu cabal reconhecimento e dela fazendo, portanto, o objeto do processo” (Cfr. Mário Aroso de Almeida, “Manual de Processo Administrativo”, 3ª Edição, Almedina, 2017, pp.92 e seguintes.).

Esta ação, por norma, dirige-se à prática de um ato administrativo ilegalmente omitido ou recusado, como está disposto no artigo 66º do CPTA, sendo necessário que a dita recusa ou omissão do ato tenha sido efetivamente ilegal.                                                                   

Assim, podemos dizer que a condenação á prática de ato devido serve para obter a condenação da entidade competente á prática de um ato administrativo que tenha sido ilegalmente omitido ou recusado, dentro de um determinado prazo, tendo em conta o artigo 66.º n. º1 do CPTA, sendo de mencionar ainda que este ato devido é o ato administrativo que, na perspetiva do autor, deveria ser emitido e não foi, tanto por existência de uma omissão ou por uma recusa, quando tenha sido praticado um ato que não satisfaça uma pretensão.

Ora, este ato, para ser devido, tem de ser um ato que a Administração esteja obrigada a praticar, o que não está aqui em causa. De facto, não existe um dever da Administração em realizar o concurso público, ou seja, o concurso público não é um ato devido da Administração. Como defende Mário Aroso de Almeida a condenação será proferida se a lei for clara nesse sentido, isto é, no sentido de impor o dever de agir, ou quando o Tribunal considere, perante o caso concreto, que a Administração não tem outra alternativa do que agir, estando o autor constituído no poder de exigir essa atuação. (Cfr. Mário Aroso de Almeida, “Manual de Processo Administrativo”, 3ª Edição, Almedina, 2017, p. 100.)

Deste modo, e indo em conta com o parecer do Ministério Público, o pedido formulado pela AA. de condenação da Administração á realização da Operação Integrada de Entrecampos não é o meio processual adequado á prossecução dos interesses da AA, faltando-lhe também o fundamento, pelo que não deve a Administração ser condenada a proceder á realização do concurso público, sendo o pedido c) da P.I., improcedente.

Nestes termos, julga-se o pedido de condenação à prática da Operação Integrada de Entrecampos em conformidade com a legalidade improcedente.

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VII. Responsabilidade Tributária


Atendendo a que o Réu e os Contrainteressados ficaram parcialmente vencidos nos presentes autos, condena-se os mesmos no pagamento na proporção de 2/3 e 1/3 respetivamente das custas do processo (cf. Art.º 527º, n.ºs 1 e 2, do CPC), condena-se o A. Ao pagamento de 1/3 das custas do processo, que se fixam 12 (doze) UC - cf. n.º 1, do artigo 6º, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela I-A, anexa ao referido diploma.

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VIII. Decisão


Por tudo o exposto, julga-se a presente ação totalmente procedente por provada e em consequência decide-se:

a)                 Conceder provimento ao pedido de declaração de nulidade da deliberação de Venda em Hasta Pública do terreno “Feira Popular”;

b)                Conceder parcialmente provimento ao pedido de declaração de anulabilidade do projeto de Entrecampos, convertendo-o em nulidade;

c)                  Negar provimento ao pedido de condenação à prática da Operação de Entrecampos em conformidade com a legalidade.

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Registe e notifique.

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Lisboa, 16 de dezembro de 2018

Os Juízes de Direito

Catarina Palma

Paula Pereira

Filipe Oliveira

Sílvio Rodrigues

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(Texto elaborado em computador e integralmente revisto pelos signatários)


domingo, 9 de dezembro de 2018


Dos actos confirmativos

O acto confirmativo será aquele que em nada acrescenta a um acto administrativo anterior, dito de ato confirmado. Esta definição tem vindo a ser encarada de um ponto de vista processual, tanto que o interesse desta figura de cinge essencialmente ao plano da sua relevância contenciosa.[1]
            Esta categoria de actos limita-se a reconhecer que sobre determinada questão já terá sido tomada uma decisão, pelo que não envolverá o reexercício do poder de decidir. Neste sentido, a Administração limita-se a reconhecer que já anteriormente foi tomada uma decisão sobre a matéria e porventura se recusa a reexercer o poder de decidir.[2]
            Esta recusa do poder de decidir advém do facto de o objetivo do acto confirmativo ser o de garantir a estabilidade do acto confirmado, uma vez que deveria ter sido este último a ser impugnado, o que não terá ocorrido. Pelo que este objetivo justifica a não impugnabilidade do ato confirmativo.
Desta forma, consideram-se “actos confirmativos” os atcos administrativos que mantêm, por concordância, um acto administrativo anterior, tendo em vista a mesma situação nele regulada, recusando, por isso a sua alteração ou revogação. Com isto se mantém a estabilidade do primeiro acto administrativo.
No âmbito dos actos confirmativos, destacam-se os actos meramente confirmativos que se limitam a confirmar actos anteriores pelo que se trata  de actos que provêm do mesmo autor ou do seu superior hierárquico, limitados a, perante insistência do interessado, reafirmar o que já havia sido decidido antes.[3]
Aprovado na sequência da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 100/2015, de 19 de Agosto, o Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, veio proceder a uma revisão extensa (e, em alguns pontos, profunda) do regime do contencioso administrativo em Portugal, constante do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro.
Na versão anterior à revisão operada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, o CPTA construía a regra geral a partir da excepcionalidade do indeferimento da impugnação de um acto administrativo com base no seu carácter meramente confirmativo, enunciando taxativamente os casos em que semelhante indeferimento, com tais fundamentos, poderia ter lugar[4].
Consideram-se como actos administrativos todas as decisões dos órgãos da Administração que ao abrigo de normas de direito público visam produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta e, por outro lado, a noção de recorribilidade do ato administrativo passa a plasmar-se sobre o conceito de lesividade.

Hoje inverte-se a formulação da regra geral, passando a dispor que os atos confirmativos não são, em princípio impugnáveis.[5] O legislador vem agora fornecer uma definição daquilo que se deve entender por ato “meramente confirmativo”.[6] Neste sentido, esclarece-se que não se verificará a regra da impugnabilidade quando “o interessado não tenha tido o ónus de impugnar o ato confirmado[7]. Assim, o interessado não terá ónus de impugnar quando o acto confirmado não chegou a adquirir eficácia ou por não ter ocorrido o facto que, desencadearia a contagem do correspondente prazo de impugnação.
            A noção de acto confirmativo dada pelo projecto de revisão do CPTA apresenta agora características materiais. Se os fundamentos do ato confirmativo são os mesmos do acto confirmado estamos perante um acto confirmativo de acto anterior aplicando-se-lhe o correspondente regime processual da respectiva inimpugnabilidade.
            A questão está em saber se apesar da identidade de conteúdo entre o primeiro e o segundo acto a ordem jurídica permite a impugnação deste em determinadas circunstâncias.
“Constituem requisitos dos chamados actos meramente confirmativos:
a) Que o acto confirmado se configure como lesivo;
b) Que o acto confirmado fosse do conhecimento do interessado, em ordem à sua recorribilidade; e
c) Que entre o acto confirmado e o ato confirmativo haja identidade de sujeitos, de objeto e de decisão”.[8]
            Verificar-se-á a identidade entre as partes quando o autor e o destinatário do ato são os mesmos nos actos em questão. Por outro lado, no que concerne à autoria do acto, não será requisito essencial a idêntica personalidade dos autores dos atos em causa dado que o que releva é a origem da titularidade dos poderes exercidos ao se praticar um acto administrativo.
            Neste sentido, o acto confirmativo é proferido na sequência de um acto administrativo, ele sim, impugnável. O acto confirmativo não será impugnável por não ter eficácia externa própria, nem possuir, autonomamente, a natureza de um ato lesivo de direito ou interesses protegidos.
            No que diz respeito à identidade da pretensão, esta deverá ser aferida em presença das mesmas circunstâncias de facto e de direito, sendo que para a identidade de causa de pedir terá de existir identidade nos fins a atingir com a prática dos atos confirmados e confirmativos.
            Pelo que este ato, meramente confirmativo, não poderá ser aproveitado para reabrir um litígio uma vez que ele não pode ser impugnado por quem tenha o ónus de impugnar o acto confirmado e não o tenha feito. O ato confirmativo não abre qualquer prazo para a via contenciosa, exatamente por não constituir um ao administrativo ao lhe faltar a capacidade de produzir efeitos jurídicos inovatórios.
            O acto confirmativo porque não acrescenta ou tira ao conteúdo de acto anterior não é sequer um acto jurídico.[9] Esta é uma ideia, segundo a qual o acto de confirmação não é uma decisão mas uma simples declaração através da qual a Administração reconhece uma decisão que já foi tomada ou se recusa, na sequência de um recurso hierárquico voluntário, a decidir.
            De acordo com o Professor Marcello Caetano o acto administrativo confirmativo não era executório nem consequentemente recorrível. Limitando-se a mandar executar o acto anterior ou a prosseguir a respectiva execução pelo que não lhe acrescentava nada de novo. Executório era o acto anterior assim confirmado porque apenas dele era a força jurídica característica da Administração.
Nesta medida, estar-se-ia a permitir que o litígio fosse suscitado sem observância dos prazos legais, resultando do artigo 53.º, número 2 do CPTA. Este acto confirmativo não pode ser impugnado se o acto anterior tiver sido notificado ao interessado ou publicado, nos casos em que o interessado não tivesse de ser notificado[10]. Resulta a contrario sensu que poderá impugnar o acto confirmativo aquele que, quando o ato confirmado, devendo ser obrigatoriamente publicado, não o tenha sido, ou do qual não tenha sido notificado, tendo direito a sê-lo[11]. Isto acontece por ser através dos actos confirmativos que, pela primeira vez, se vê confrontado com o ónus de reagir a uma decisão que até aí, constava de um acto do qual não tinha ónus de impugnar.
            Contudo, a questão da irrecorribilidade dos actos confirmativos é diferente nos casos de nulidade do ato confirmado. A confirmatividade dos actos é geradora da irrecorribilidade face à consolidação dos actos administrativos, de que se não recorreu tempestivamente. É o “caso decidido” e a estabilização da ordem jurídica administrativa que justificam estruturalmente que um acto posterior, de idêntico conteúdo e com a mesma fundamentação seja irrecorrível.
Porém se o acto confirmado é nulo, o mesmo não merece qualquer proteção, pelo que não faz caso decidido. Daí que, não haja – para efeitos de irrecorribilidade – confirmatividade de actos nulos. Tal decorre do regime da nulidade dos actos, que não produzem quaisquer efeitos, independentemente da declaração da sua nulidade, a qual pode ser invocada a todo o tempo e não é suscetível de ratificação, reforma ou conversão – artigos 134º e 137º do CPA.[12]
A jurisprudência tem sido consistente e reiterada, ao não admitir que se possam invocar contra um ato administrativo vícios que se podiam e deviam ter invocado contra atos anteriores, sendo isso mesmo o que resulta da teoria tradicional dos atos meramente confirmativos.[13]
Disto resulta claramente que a conjugação dos Artº 51º e 53º do CPTA determina correspondentemente que apenas se mostrarão impugnáveis os actos administrativos dotados de eficácia externa, ainda que inseridos num procedimento administrativo, designadamente aqueles cujo conteúdo seja suscetível de lesar posições jurídicas subjetivas.


[1]  Assim, M. Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim, Código do Procedimento Administrativo, 2ª ed., actualizada, revista e aumentada, Coimbra, 1997, p. 715. 
[2] Cfr. M. Aroso de Almeida, “Manual de Processo Administrativo”, pág. 266 e 267
[3] Cfr. Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos anotado, VI, Almedina, p. 357
[4] Casos em que o acto confirmativo tivesse sido impugnado pelo autor, e lhe tivesse sido notificado ou tivesse sido publicado, sem que a notificação fosse obrigatória.
[5] Cfr. Art. 53.º/1, primeira parte, do CPTA
[6]Os atos que se limitem a reiterar, com os mesmos fundamentos, decisões contidas em atos administrativos anteriores”, Crf. Art. 53.º/2 do CPTA
[7] Por não se ter verificado relativamente a esse acto, qualquer dos factos previstos nos n.os 2 e 3 do art. 59.º do CPTA
[8] Cfr. Acórdão do TCA Norte de 04.11.2016, Proc. 00043/14.7BEVIS
[9] J. M. Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo, I, Lisboa, 1982, p. 347.
[10] Cfr. M. Aroso de Almeida, “Manual de Processo Administrativo”, pág. 266 e 267
[11] Cfr. Art. 59.º/2 CPTA
[12] Cfr., neste sentido, os Acórdãos deste Supremo Tribunal de 16-05-91 e 03-06-97, proferidos nos recursos 16.393 e 41.587.»] – Ac do TCA-N de 19/02/2016, no âmbito do processo n.º 01327/09.1BEBRG.
[13] Cfr. Mário Aroso, “Suspensão da eficácia de atos administrativos de execução da sentença”, Cadernos de Justiça Administrativa nº11, pág.20)