terça-feira, 30 de outubro de 2018

Ato administrativo e ação administrativa na relação entre o novo CPA e o CPTA


De forma a fazer face aos muitos dos problemas suscitados pelo antigo Código de Procedimento Administrativo (CPA) de 1996, o CPA de 2015 visa promover uma nova realidade em torno da Administração. No entanto, o CPA não se poderá reger sem o acompanhamento de outro documento extramente importante, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).

De facto, ambos os Códigos se encontram dependentes um do outro. Da mesma forma, se me permite a analogia, que o Código de Processo Civil se encontra ligado ao Código Civil. Tanto o CPA como o CPTA dizem respeito à forma como a Administração deve atuar e à forma como ela deve suscitar os seus problemas e defender os direitos e interesses legalmente protegidos dos seus cidadãos. No entanto, ambos têm aplicações diferentes: um centra-se em tentar proceder a uma resolução, dita “privada”, ou seja, entre os particulares e a Administração frente a frente; e, no caso de tal não se conseguir resolver, procede-se a uma audiência nos tribunais administrativos onde a Administração tentará fazer valer o seu ponto de vista contrapondo-se ao pedido do autor, que é o particular.

Isto é importante e relevante que assim ocorra para que os tribunais não se encontrem repletos de muitos míseros problemas que poderiam ter muito bem sido resolvidos se ambas as partes tivessem prosseguindo a um diálogo efetivo, acompanhado de audiência dos interessados, indicado por Costa Gonçalves[1].

No entanto, o CPTA possui uma série de conceitos e realidades de que parte do próprio CPA. Não se consegue proceder a uma boa análise do CPTA se não se passar anteriormente pelo CPA, da mesma forma que primeiramente nas faculdades de direito se ensina Direito Administrativo e só depois disso se ensina Contencioso Administrativo. Isto significa que um encontra-se em primeiro lugar, para dar mais sentido e contexto ao que se encontra em segundo lugar. Esta caracterização que apresentei de primeiro ou segundo lugar de nada tem a intenção de colocar a função processual numa posição de menor importância jurídica, muito pelo contrário, o CPTA acaba por responder a questões mais complexas que o CPA não consegue, por si só, resolver.

Tem-se o exemplo do caso de ocorrer um recurso para o Tribunal Central Administrativo pelo facto de o particular ter ficado descontente com a sentença produzida em tribunal de círculo. Esta é uma questão que já anteriormente se inseria dentro da jurisdição dos tribunais administrativos, pois trata-se de um caso de recurso ao grau hierárquico superior.

A criação deste novo CPA de 2015 correspondeu a muitas exigências que já tinham sido pedidas ao longo das décadas, abrangendo pela doutrina, incluindo Vasco Pereira da Silva. Tal como a lição da vida que diz que se aprende com os erros, também os erros e incompreensões trazidas pelo CPA de 1996 criou a necessidade inevitável de elaborar um novo diploma. No entanto, as alterações foram tão notáveis por parte da comissão de especialistas que, foi fatal a criação de um novo Código de Procedimento Administrativo, tal como indica o preâmbulo do mesmo Código.

No entanto, apesar das relações em comum, existe apenas um ponto em que ambos convergem e, com o qual, merece atenção. Vejamos as relações e os pontos que têm em comum o CPA e o CPTA relativamente ao seu único objetivo de convergência: o ato administrativo.

O conceito de ato administrativo encontra-se presente em ambos os Códigos.

Ato administrativo consiste nas decisões proferidas no exercício de poderes jurídico-administrativos e que visam produzir efeitos externos numa situação individual e concreta, artigo 148º CPA. Este preceito encontra-se relacionado diretamente com o 51º do CPTA onde indica a realidade da impugnabilidade destes mesmos atos na sua totalidade (através do pressuposto “designadamente”, o que quer dizer não taxativo, deixando margem para outras possibilidades).

É de notar que contrariamente ao CPA de 1991, o novo CPA não faz qualquer referencia ao modelo orgânico na definição de ato administrativo[2]. O objetivo do legislador foi precisamente a de omitir a referência ao facto de se tratar de decisões adotadas ou de normas jurídicas editadas por órgãos da Administração Publica[3].

Em minha opinião, concordo com Costa Gonçalves que refere que esta omissão de nada traz um efeito diferente do anterior Código[4] pois o ato administrativo não poderá deixar de estar ligado ao seu elemento orgânico ou o ato nunca se proferia. É o mesmo que dizer que deve ser feito um projeto mas não se atribui a ninguém a competência da sua realização[5] e, se os projetos continuam a ser realizados, alguém tem de os criar. Como refere Costa Gonçalves, os órgãos têm, assim, que estar relacionados ao conceito[6], aliás, eles ainda o estão, apenas não expressamente. Costa Gonçalves também refere o facto de que o elemento orgânico do conceito de ato administrativo continuar a consistir na presença de um órgão da Administração Pública, de um outro órgão público ou de uma entidade pública ou privada investida de funções administrativas e de poderes públicos[7]. São eles que criam o ato, são eles que têm de permanecer na sua criação ou não poderão fazer os atos administrativos que sempre têm feito até então.

Levando em conta a interpretação teleológica do artigo, verifica-se que o legislador não quereria limitar a criação de atos administrativos a apenas a uns órgãos em específico[8], porque isso poderia impedir o visar de direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. Parece-me que o legislador, aquando as experiências e contínuas críticas negativas quanto à legislação administrativa, decidiu optar por uma redação não discriminatória e mais livre.

No entanto, por isso mesmo, tal como foi descrito por Costa Gonçalves, trata-se de uma questão que não se livra totalmente da possibilidade de ocorrer uma expansão indesejável do conceito de ato administrativo no que toca à sua competência de realização[9]. Se isso ocorrer, a meu ver, poderá igualmente surtir para o Contencioso um cenário inadequado pois é este que trata da criação da ação administrativa, podendo ser criados atos por órgãos que não os deveriam fazer.

Centremo-nos agora, na sua relação com a ação administrativa.

A ação administrativa consiste no processo realizado em tribunal administrativo centrado num litígio que ocorreu ao autor, ao particular, e cujo tribunal vai verificar se a situação do particular deve ser modificada para ir de encontro ao seu direito fundamental de prossecução dos seus direitos e interesses legalmente protegidos ou, se pelo contrário, não existe razão para a modificação da mesma.

Dentro das competências dos tribunais administrativos encontra-se, precisamente, a impugnação de atos administrativos, a condenação à prática de atos administrativos e a condenação de não emissão de atos administrativos, artigo 37º CPTA . Ora, se o conceito foi alargado pelo novo CPA, isto pode trazer consequências profundas no Contencioso: se se optar para uma interpretação demasiado alargada[10] (que o CPA não impede) e que foi apresentada pelo pensamento de Costa Gonçalves, abrange competências a muitos órgãos criadores de atos administrativos. Assim, os tribunais passariam a julgar casos desnecessários, sobrecarregando a justiça pois aqueles atos nunca deverão ser válidos porque foram criados por órgãos que não possuem a devida competência.

Muito dificilmente ocorrerá que os verdadeiros órgãos deixem de criar os atos, os órgãos continuam ligados ao ato administrativo, e a prática do antigo CPA assim sugere que muito continue igual pois quando entrou em vigor o novo CPA, os juízes dos tribunais administrativos continuaram a julgar como sempre têm feito e a sua experiencia dirá que será o órgão competente a redigir o ato. No entanto, a dúvida emergente de novos órgãos a redigirem não deixa de ser possível[11]. É algo que deve ser tido em conta, que deve ser cuidadosamente analisado.

Relativamente à ação administrativa, esta tem um leque vastíssimo de situações reguladas, no seu artigo 37º CPTA. Esta foi uma das mudanças que o Código trouxe, a sua relação com a impugnação, condenação à não emissão, condenação à prática de atos administrativos. No entanto, Vasco Pereira da Silva critica esta formação[12], devido aos critérios que distinguem cada uma das situações abrangidas pelas alíneas do artigo 37º: esses critérios são critérios substantivos e não processuais, e, sendo substantivos, eles modificavam a lógica do processo. É, então, ainda necessário modificar a questão, segundo Vasco Pereira da Silva, e dividir os pedidos em pedidos declarativos constitutivos ou de anulação e pedidos de condenação. Misturar as duas coisas, segundo o professor, não traz um bom resultado[13].

A sua justificação é pelo facto de nos tratarmos de apenas uma única ação administrativa mas que o próprio CPTA não facilita as coisas pois tem regras para a ação administrativa no 37º mas depois tem sub-normas quanto à impugnação de atos administrativos no artigo 50º e ss (entre muitos outros casos como é nos de condenação à prática do ato devido e ação de impugnação e condenação à emissão de normas, artigos 66º e 72º CPTA respetivamente).

Estas regras dizem respeito aos pressupostos processuais, o objeto de processo e o próprio andamento do processo. Ocorre assim um sistema de 4 em 1, há na realidade 4 ações sobre o mesmo nome pois o legislador decidiu misturar o pedido com as formas de atuação administrativa (ou seja, o critério processual com o substantivo). No entanto, Vasco Pereira da Silva[14] não garante ser uma má solução adotada pelo legislador (ele até disse que consiste na menor pior ação adotada). O professor prefere isso do que a possibilidade de o legislador ter criado “6 sub-ações” dentro de cada uma delas, daí eu chegar à minha conclusão.

Esta característica já existia no CPTA anterior, que distinguia entre ação administrativa especial e a comum. A especial consiste nos casos mais emblemáticos de ação administrativa de certos poderes de autoridade da Administração que incluía impugnação de atos, condenação para a prática de atos, impugnação de normas, entre outros. A  comum dizia respeito a todos os litígios cuja apreciação se incluíssem na jurisdição administrativa mas sem forma especifica no CPTA e/ou legislação avulsa.

O novo CPTA reduz tudo à realidade de uma única ação mas, em rigor, não há apenas uma ação em si mas várias dentro dela, à mesma.

Na minha opinião, Vasco Pereira da Silva tem razão quando diz que as normas deveriam estar ordenadas segundo o critério processual e não segundo o substantivo[15] pois isso confunde muitas das vezes as questões e não permite uma resolução tão rápida e eficiente pois existem regras e as suas sub-regras, em vez de estar tudo caracterizado e ordenado segundo a ordem da marcha do processo, que garantiria o melhor alcançar do princípio da gestão processual da justa composição do litígio.

Quanto à questão da apresentação da ação administrativa no seu artigo 37º CPTA, apesar da crítica feita, não me parece que seja um artigo mal redigido, ele esclarece o nosso entender, como que nos dando coordenadas no infinito do mundo do Contencioso Administrativo mas que, ainda assim, serão necessárias alterações para o modo processual, i.e., relacionado com a marcha do processo. A criação de uma redação mais próxima da realidade do 37º CPTA aquando da criação de uma ação administrativa e das suas ramificações (em muitos outros artigos como o 50º e 51º) em relação aos seus princípios processuais deve ser tida em conta.

Quanto ao omitir por parte do legislador relativamente aos órgãos capazes de criar um ato administrativo, introduzido por Costa Gonçalves, e, concordando com o autor, esta omissão fará mais mal do que bem pois a prática que o legislador rasurou no antigo CPA permanece igual[16] (a tal ideia de os juízes saberem quais são os órgãos emanados de poder de criação de atos administrativos já antes mencionado) e, apesar disso, poderá criar ditos “atos” administrativos que não o são na realidade. Igualmente, uma nova redação do artigo 148º CPA não é algo que deve ser deixado de ser refletido.

Em abordagem final, a relação dita amistosa do CPA com o CPTA é definitivamente crucial para a chave da criação de um ato administrativo e uma ação administrativa mais próximos das necessidades dos cidadãos e das suas realidades.



[1] COSTA GONÇALVES, Pedro – Algumas alterações e inovações “científicas” no novo CPA inserido na obra Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo por AMADO GOMES, Carla; NEVES, Ana Fernanda; e SERRÃO, Tiago, 2015, 2ª edição, AAFDL
[2] COSTA GONÇALVES, Pedro – Algumas alterações e inovações “científicas” no novo CPA inserido na obra Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo por AMADO GOMES, Carla; NEVES, Ana Fernanda; e SERRÃO, Tiago, 2015, 2ª edição, AAFDL
[3] COSTA GONÇALVES, Pedro – Algumas alterações e inovações “científicas” no novo CPA inserido na obra Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo por AMADO GOMES, Carla; NEVES, Ana Fernanda; e SERRÃO, Tiago, 2015, 2ª edição, AAFDL
[4] COSTA GONÇALVES, Pedro – Algumas alterações e inovações “científicas” no novo CPA inserido na obra Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo por AMADO GOMES, Carla; NEVES, Ana Fernanda; e SERRÃO, Tiago, 2015, 2ª edição, AAFDL
[5] COSTA GONÇALVES, Pedro – Algumas alterações e inovações “científicas” no novo CPA inserido na obra Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo por AMADO GOMES, Carla; NEVES, Ana Fernanda; e SERRÃO, Tiago, 2015, 2ª edição, AAFDL
[6] COSTA GONÇALVES, Pedro – Algumas alterações e inovações “científicas” no novo CPA inserido na obra Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo por AMADO GOMES, Carla; NEVES, Ana Fernanda; e SERRÃO, Tiago, 2015, 2ª edição, AAFDL
[7] COSTA GONÇALVES, Pedro – Algumas alterações e inovações “científicas” no novo CPA inserido na obra Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo por AMADO GOMES, Carla; NEVES, Ana Fernanda; e SERRÃO, Tiago, 2015, 2ª edição, AAFDL
[8] COSTA GONÇALVES, Pedro – Algumas alterações e inovações “científicas” no novo CPA inserido na obra Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo por AMADO GOMES, Carla; NEVES, Ana Fernanda; e SERRÃO, Tiago, 2015, 2ª edição, AAFDL
[9] COSTA GONÇALVES, Pedro – Algumas alterações e inovações “científicas” no novo CPA inserido na obra Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo por AMADO GOMES, Carla; NEVES, Ana Fernanda; e SERRÃO, Tiago, 2015, 2ª edição, AAFDL
[10] COSTA GONÇALVES, Pedro – Algumas alterações e inovações “científicas” no novo CPA inserido na obra Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo por AMADO GOMES, Carla; NEVES, Ana Fernanda; e SERRÃO, Tiago, 2015, 2ª edição, AAFDL
[11] COSTA GONÇALVES, Pedro – Algumas alterações e inovações “científicas” no novo CPA inserido na obra Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo por AMADO GOMES, Carla; NEVES, Ana Fernanda; e SERRÃO, Tiago, 2015, 2ª edição, AAFDL
[12] PEREIRA DA SILVA, Vasco - O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, 2009, 2ª. edição, Almedina
[13] PEREIRA DA SILVA, Vasco - O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, 2009, 2ª. edição, Almedina
[14] PEREIRA DA SILVA, Vasco - O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, 2009, 2ª. edição, Almedina
[15] PEREIRA DA SILVA, Vasco - O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, 2009, 2ª. edição, Almedina
[16] COSTA GONÇALVES, Pedro – Algumas alterações e inovações “científicas” no novo CPA inserido na obra Comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo por AMADO GOMES, Carla; NEVES, Ana Fernanda; e SERRÃO, Tiago, 2015, 2ª edição, AAFDL

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